Numa noite de casamento
«Numa noite de casamento
ouvi a noiva dizer:
marido, vamos embora
que sem ti não posso viver.
Já aqui na’(1) posso estar.
Acredita que é verdade.
Eu para fazer minha vontade
na tua cara quero beijar.
Marido, vamos deitar.
Que será melhor esse momento.
Dou-te beijos, mais de um cento(2),
e mais de um cento, sem cessar.
E eu pus-me os noivos a apreciar
numa noite de casamento.
O noivo dizia assim:
mais ou menos sei o caminho.
Espera aí um poucachinho(3)
que é para não inquietar motim.
Dum princípio inté(4) ao fim.
Já me deves compreender,
porque de repente não pode ser
e abalamos lentamente.
Mas pra fugir a toda a gente
eu ouvia a noiva dizer:
nunca mais quero ser donzela
como antigamente a Severa(5).
Que a nossa cama está à espera
pra gente ir-se pra(6) cima dela.
Marido ‘tamos com a tela
Quando chegar uma certa hora.
Ambos, ninguém nos ignora,
em fazermos a nossa vaza
mas pra dentro da nossa casa
marido, vamos embora.
Não me saias embriagado! Até fazia assim [levava a mão à cabeça]:
Não me saias embriagado!
Não te ‘tejas(7) a embriagar.
Porque no fim do nosso jantar
tens um prato melhorado.
É um belo ensopado,
ma’ não é coisa de comer.
Se bem o souberes fazer
não o fazes num segundo.
Mas por ter-te um amor profundo
sem ti não posso viver.»
Paulatino Augusto, Grândola, Fevereiro de 2007
Glossário:
(1) Na’ – abreviatura oral de “não”.
(2) Cento – cem (muitos).
(3) Espera um poucachinho – espera um pouco, espera um momento, um instante.
(4) Inté – até.
(5) Severa – Maria Severa Onofriana (1820-1846) é referenciada como a primeira cantadeira de fado, em Lisboa, e é um dos mitos e referências da história do fado em Portugal.
(6) Pra – abreviatura oral de “para”.
(7) ‘Tejas – abreviatura oral de “estejas”.
Para a execução deste glossário consultaram-se os seguintes websites: http://www.priberam.pt; http://www.infopedia.pt; http://ofadodelisboa.blogspot.com/2007/03/o-fado-da-severa.html