Inventário PCI
Esposende
"O porco que veio no rio" - Numa época de grande escassez e dificuldade, uma mulher encontro um porco que é cobiçado por todos… mas que não chegará a saciar a fome a ninguém.
Olívia Nibra, Ano de Nascimento 1937. Esposende. Registo 2010
Transcrição
O porco que veio no rio
A minha mãe levantava-se cedo e ia ver, à beira do rio, se tinha lenha. Tinha, às vezes; tinha pinheiros, tinha lenha… E ela carregava logo para casa. E então, num dia, ela foi até à beira do estaleiro. Era um estaleiro ali à beira do Vermelhinho. Um estaleiro, ali. E foi ali… Foi cedo. E quem viu lá? Quem ela viu, a minha mãe: o meu Tio das Dores Castro e o Joaquim Musal, os dois. Mas eles sabiam que a minha mãe que era meia palhaça, gostava muito de brincadeira. Ninguém que estivesse à beira dela… Tudo se ria! Disseram-lhe a ela:
- Micas! -ela era Maria, chamavam-lhe Micas. -Micas! Está aqui um chico!
- Um chico?
Ela correu… E vinha um, atrevido… Pegou no chico. E ela foi pedir um carro e pediu ajuda para meter o chico dentro do carro. Mas o chico era muito pesado, que era muito gordo! Era muito pesado, um chico grande! Era muito pesado. E pronto, eles ajudaram-na.
E lá vinha ela, toda contente com o chico, toda a correr… Veio a casa de uma minha tia. Ela tinha muitos filhos; e vinha ela de manhãzinha, ainda estavam na cama. Os filhos dormiam à beira da porta da rua, era ali à beira… A minha mãe chegou ali à porta, começou a chamar:
- Joaquina! Joaquina! Anda cá à porta!
- Quem é? Que queres?
- Anda cá à porta, que tens aqui o teu alimento, para ti e para os teus filhos! Ai, mulher, vais encher a barriga aos teus filhos! Anda cá fora depressa!
Ela abre a porta, a minha mãe arrasta por um cobertor que tinha à beira duma enxerga, à beira, que era dos filhos – puxa dum cobertor que era para tapar o chico para ela levar para dentro!
- Puxa, Joaquina, para dentro!
- Vai-te embora, tola…-era a minha tia: -Vai-te embora, tola, que eu vou presa…
E ia presa, ela ia presa! Se ela mete para dentro o chico, é presa!
Pronto, ela não quis. Veio embora ela, toda triste, vinha ela. Ela não quis o chico. Não quis o chico porque ela tinha medo de ser presa.
Vem ela para a beira do matadouro, que tínhamos um matadouro à beira do rio; um matadouro pequenino. Depois desfizeram aquele e fizeram aqui um grande. Foi bem para a beira do matadouro e juntou-se ali muita gente. Juntou-se ali muita gente: tudo queria prato com o chico!
- Ei, vamos embora! O chico é nosso! O chico é nosso!
Muita gente, mas aquilo era… Parecia uma festa! Era gente… (Ainda não tínhamos aquela estrada daquele lado, ainda não havia aquela estrada. Aquela estrada ainda não estava posta, ainda não tinha estrada à beira do rio. Eu ainda não tinha filhos e já tenho um filho que tem 52 anos, já vai fazer 53! Portanto isto já foi há muito tempo, ainda não havia aquela estrada.) Começou a vir muita gente, parecia uma procissão, aquilo, a correr, tudo ali vinha ver… Parecia que era um santo que tinha aparecido – e era um chico! Tudo corre, tudo corre para ver o chico!
- Onde ides?
- Vamos ver um chico que apareceu no sul!
- Vem, vem! -nunca viram um chico!
Bem, começou a vir uma rapariga… Uma que lhe chamavam, a Palmira Pirata, a Laura Marista, a Carolina do Alter – e era a Micas do Emílio. E a Micas do Emílio diz:
- Ai… Sabes onde está o que mata os chicos? -ele morto já estava ele, era só para o queimar.
-Sabes onde ele está? Está em casa da Dona Angelina do Portela. -era a Portela, para desfazer um chico.
E ela disse assim para a Laura… Eu também estava lá metida…
- Laura, vamos lá ver se ele vem!
Fomos lá e ele, o homem, não queria vir, porque tinha mais chicos para matar lá em Fão. Ele era de Fão. E pedimos:
- Ó, venha, venha, venha… Venha, venha, que nós pagamos! Além da paga, era um favor que nos fazia…
O homem veio. O homem veio, queimou. A Micas do Emílio foi logo buscar palha. A queimar… Eu fui buscar sabão… Tudo… queimar o chico! Queimou o chico bem queimadinho. Nós, com uma pedra, a lavar com sabão o chico, a rapar com uma pedra, a esfregá-lo, a esfregar, todas… Todas contentes! Aquilo era uma festa, aquilo com o chico.
Olha… Quando depois, mais tarde, um boato: que tinha aparecido um chico podre e que nós que o queríamos comer; nós comíamos o chico. O homem abriu o matadouro, abriu o chico depois dele já todo lavadinho… As tripas fumegavam! As tripas do chico fumegavam! Estava fresquinho!
Andava lá sempre um senhor que era o Sr. Francisco, era um marinheiro americano, sempre para trás e para diante, andava sempre a passear por ali, e disse:
- Raparigas, se vós venderdes estes presuntos eu fico com eles. Não tenho nojo de os comer. Eu fico com eles! -o americano, o Francisco americano. -Eu fico com eles.
Bem, veio aquele boato… O senhor doutor Joel, que era da saúde, mandou logo que queimassem o chico! Que que o enterrassem e o queimassem!
Nós ainda estivemos ali muito tempo, porque ali era o matadouro! Ao outro dia vinha o veterinário ver! Era ali o matadouro, matavam ali bois, vacas e carneiros e chicos e tudo – e depois ao outro dia vinha o veterinário. Se o veterinário dissesse que a gente que não podia comer o chico, a gente não comia! Veio o senhor doutor, deu ordem para enterrar o chico. Para enterrar o chico, pronto… enterrámos o chico.
O Zé da Vila é que estava lá empregado na Câmara e ia fazer ali coisas no matadouro. Ia ali fazer coisas no matadouro. Veio a ordem então para ele o levar, deitou-o dentro do carro. As moças – a Laura Marista, a minha mãe e era eu, era a Tia Micas do Emílio, a Carolina do Alter e a Pirata, a Palmira Pirata – havia uma coisa que era a Casa do Povo, ali naquela estrada para onde se ia para o cemitério; havia ali uma casa que era a Casa do Povo. Fomos todas para ali. Fomos para ali, nós todas a gritar, elas todas a gritar pelo chico:
- Meu amor, adeus! Adeus! -tudo com os lenços: -Adeus!
O Zé da Vila nem sabia se ia para a frente, se ia para trás! Ele também era um palhaço, ele era um palhaço direitinho. Ele ria-se a perder! Não sabia se ia com o chico para a frente…
- Adeus, meu filhinho, adeus! Adeus! -mas aquilo era um clamor: -Jesus! Senhor! -nós, tudo a gritar, cada vez gritavam mais: -Adeus! Adeus, meu filho, adeus! Adeus, meu menino!
Pronto, o Zé da Vila lá foi, aos empurrões; lá foi ele. Lá foi ele, foi enterrá-lo. Deitou creolina. Se ela não deita creolina, ainda alguém o havia de desenterrar! Mas ele deitou creolina, ninguém o desenterrou!
Às cinco e meia da tarde, aparece aqui um homem. Era o moleiro. O moleiro deu de comer ao chico às seis horas da manhã. Veio aquela cheia: abriu as portas, arrombou as portas, partiu – lá foi tudo! O chico veio por aqui fora! Veio por aqui fora. Diz:
- Olhe, vocês não ouviram por aqui que entrasse um chico, um chico… Que eu dava-lhe a metade do chico a quem o encontrasse.
Digo assim:
- Olhe, você quer ver o chico? Vá ver detrás do cemitério, está lá enterrado. Enterraram-no. O senhor doutor mandou enterrar.
- Ah… que ainda eram seis horas da manhã, lá dei de comer ao chiquinho… e ele abriu…
Você está a rir? Mas foi uma verdade! Sim senhora!
E pronto. Mas era um chico… Que rico chico… Ai, que chico grande… Um chico gordo! Que rico chico… Ai, que rico chico… Ninguém por aqui matava aquele chico. Ele era moleiro, só deitava farinha para comer! Ai, meu rico chico… Ai, ai… E tanta fome que havia naquela altura…
Caraterização
Identificação
Contexto de produção
Contexto territorial
Contexto temporal
Património associado
Contexto de transmissão
Histórias partilhadas nos tempos de lazer e em festas e romarias. Actividades promovidas pelo Município.