Inventário PCI
Idanha-a-Nova
"A serenata" - Numa noite escura uma serenata, a uma rapariga, é interrompida por uma barulho infernal vindo, por volta da meia-noite, do cemitério…
João Sousa, Ano de nascimento 1926.
Idanha-a-Nova
Registo 2010.
Caso/episódio de história de vida/tradição das serenatas
Transcrição
[A serenata]
«Eu queria também contar uma, já com estes colegas, então já tocávamos todos.
Naquele tempo - isto já há cerca de sessenta e oito anos, à volta de setenta anos, que isto se passou -, na Zebreira(1), havia o hábito dos rapazes solteiros oferecerem serenatas(2) às raparigas com que queriam namorar ou já namoravam. Era um hábito(3)! E, então, nós, tocadores, juntávamos todos e íamos dar as serenatas. Era só a partir da meia-noite!
E, então, uma noite, fomos dar uma serenata, [risos], a uma rapariga que ficava aí uns duzentos metros do cemitério. Na Zebreira, o cemitério fica ao pé de uma baixa. E a rapariga morava ali, junto à igreja, um bocadinho cá mais alto. [Risos]. Começamos.
E as serenatas eram assim: as serenatas eram compostas por três músicas! E, se, por qualquer motivo, só fossem duas ou uma, era uma desfeita grande para a rapariga! Tinham que ser as três! Completas! - Então, chegava-se à porta das raparigas, davam-se três pancadas na porta, com muita força, [risos]. E vinham. É claro, quem tinha janela, muito bem! Quem não tinha, ouvia as músicas dentro de casa.
Bom, e lá estávamos nós. Numa noite tão escura, tão escura, que nós, nós uns com os outros, não nos víamos! Naquele tempo, ainda estava muito longe de haver luz eléctrica na Zebreira! [Risos]. De forma que era uma noite muitíssimo escura! E íamos a meio da serenata, da segunda música, e começamos a ouvir um barulho infernal! Uma coisa fora do normal àquela hora! Como disse à pouco, as serenatas começavam, sempre, a partir da meia-noite!
Aquele barulho era uma coisa louca! - É que, naquele tempo, as ruas, [risos], (não só aquela que ia directa ao cemitério), a calçada(4) era já muito antiga: eram altos e baixos, altos e baixos, pedras por aqui, pedras por ali, etc. - E a gente começou a ouvir aquele barulho… Uma coisa louca! Uma coisa louca mesmo! E a gente olhávamos uns para os outros e com medo! Bem, nós tínhamos que tocar três músicas! ‘Távamos no meio da segunda e, é claro, não queríamos dar o desgosto ao rapaz de não dar as três serenatas! O barulho começou a ser tanto, tanto, tanto! Aquilo era o inferno que vinha por aquela rua acima! E digo eu assim:
- Eh, rapazes! Fujam! Que vêm aqui *almas do outro mundo*(5)!
Fugiu tudo! Corremos para os lados da praça. Mas, quando ia correndo, eu faço assim, [olhou por cima do ombro], e vejo uma espécie de um vulto, atrás da igreja, a querer-se levantar, assim… Aquilo, é como disse: escuridão completa, mas via-se uma coisa de nova, assim um bocadito mais claro! E digo assim:
- Parece que há ali qualquer coisa!!! Acho que há ali… - Que eles já estavam fora do perigo, porque a gente ouvia aquela barulheira infernal era para os lados do cemitério! Pa’(6) rua acima!
Imediatamente fomos lá. Cercámos o fulano(7)! Era, então, um fulano que andava também pra(8) querer namorar com a mesma rapariga! E queria dar o dissabor(9) da serenata não ir até ao fim. [Risos]. Veja bem: tinha um rolo de fio enrolado a um braço, atou-o, as pontas do fio, lá, junto ao cemitério… - Naqueles tempos, usava-se muito o *cântaro de zinco*(10)! - Eram cântaros velhos: uma grande porção de cântaros velhos (e depois tinham a parte da asa), tudo atado naquele fio. E aquela barulheira, que a gente ouvia, era uma data de cinco ou seis cântaros, assim presos, cada qual pela sua asa! Apanhavam a rua toda, por aí acima, a bater nas paredes, nas pedras, nas poças! De formas que era aquele grande barulho… E, então, era ele que estava a dar cabo da serenata! E a ideia daquele homem! A gente chamava-lhe, por alcunha(11), o Bocage(12)…»
João Sousa, Zebreira, Idanha-a-Nova, Setembro de 2010
Glossário:
(1) Zebreira – vila e freguesia do concelho de Idanha-a-Nova, situada na região Centro de Portugal, sub-região da Beira Interior Sul, distrito de Castelo Branco.
(2) Serenata – execução instrumental ou vocal feita à noite, em frente à casa ou sob a janela de alguém; também o nome dada a uma composição simples e melodiosa, feita de maneira a poder ser tocada numa serenata.
(3) Hábito – uso, costume.
(4) Calçada – conjunto de pedras que revestem uma rua ou caminho; rua empedrada.
(5) Almas do outro mundo – fantasmas; espectros.
(6) Pa’ – abreviatura de “para” (usadade modo informal e coloquial).
(7) Fulano – pessoa incerta (uso coloquial).
(8) Dissabor – causar contrariedade, desprazer, aborrecimento.
(9) Pra – o mesmo que “para”(redução da preposição para usadade modo informal e coloquial).
(10) Cântaro de zinco – Vaso grande, de bojo largo e arredondado, com gargalo, com uma ou duas asas, feito de folha, para armazenar líquidos.
(11) Alcunha – nome que se usa no lugar do nome próprio de alguém ou que é acrescentado a esse nome e que respeita a alguma característica física ou moral do indivíduo ao qual se atribui.
(12) Bocage – Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805), poeta português.
Para a execução deste glossário consultaram-se: http://aulete.uol.com.br; http://bemfalar.com; http://www.infopedia.pt; http://www.priberam.pt; http://www.significadodepalavras.com.br
Caraterização
Identificação
Contexto de produção
Contexto territorial
Contexto temporal
Património associado
Transmitidas aos serões, em quotidianos de trabalho e lazer.
Contexto de transmissão
Residentes do concelho de Idanha-a-Nova em festas e romarias locais e em iniciativas do Município, Centro Cultural e Biblioteca de Idanha-a-Nova. Principais actividades desenvolvidas e que promovem estas manifestações culturais:
Festas e Romarias
Romaria da Nossa Senhora do Almortão
Romaria de Nossa Senhora da Graça
Festa do Divino Espírito Santo
Os Mistérios da Páscoa
Festa das Cruzes Monsanto
Festa do Espírito Santo Ladoeiro
Festa de Nossa Senhora da Conceição Penha Garcia
Projectos
Projecto Oralidades
Festivais
Festival de acordeonistas e tocadores de concertinas
(Ver links em documentação)