Inventário PCI
Relato sobre a arrematação de Santo António, em que cada família prometia uma peça de carne ao santo, que tentava voltar a comprar em leilão
- "Ainda temos a rematação de Santo António, não sei se já ouviram falar. Antigamente as pessoas, agora já não se cria muito os porcos, mas antigamente criavam-se os porcos e então para que Santo António - Santo António diz que é o protetor dos animais - para que os animais se criassem e se dessem bons, prometia-se uma peça a Santo António, um bocado do porco. Normalmente era um lacão."
- "Ainda tenho ali para lhe dar este ano."
- "Também eu tenho um. O lacão, a mais da frente, aquela parte."
- "Mas só lhe deixava um bocadinho da orelha."
- "Mentira. Eu tenho um e deixei-lhe muita coisa."
- "Eu tenho tudo, o lacão inteiro."
- "E davam-lhe o lacão. Havia gente que dava-lhe a cabeça, havia gente que dava uma chouriça. Cada um dava-lhe aquilo que prometia. E depois, na véspera da festa há a rematação das carnes. Chamam-lhe a rematação dos lacões de Santo António, que se rematam lá a quem der mais. Vendem-se e o dinheiro é para o santuário."
- "Mas, nesse caso, muita gente rematava o próprio que eles davam."
- "Mais engraçado foi Carlos, o meu, há três anos. Dei um lacão e depois fomos para lá, comer lá e disse-lhe eu, estava a fazer a comida e disse-lhe ao Carlos: «Vais lá e rematas o lacão.». Chegou-me a casa sem ele.
«- O lacão, Carlos?»
«- Botaram muito dinheiro, não estava para estar lá todo o dia a botar dinheiro.» [Risos]
Que eu lembro-me!"
- "A pessoa queria trazer a peça deles, queria-a trazer para a casa, mas as outras pessoas subiam-lhe para cima, subiam-lhe [o preço]."
- "Viram que ele que o queria e começaram a botar para cima. Deixou-o ir."
- "Mas a tradição era essa."
- "A tradição dos lacões."
- "Era Leonildo, no meu tempo, era Leonildo o que rematava."
- "Agora pelo fim era o Pereira do altifalante que rematava. E noutro tempo, já há muitos anos, rematavam aos domingos. Era um domingo qualquer do mês que havia a rematação a sair da missa, nas laias das igrejas. Também dos lacões de Santo António."
- "Mas muitos só levavam mesmo aquela pecinha na frente e depois aquilo ia um dinheiro enorme. [Pensavam:] «Como é que aquilo pode custar tanto dinheiro? Aquilo vai-se comprar [barato].». Mas era o próprio dono que não o deixava ir, porque ele queria dar aquele dinheiro, mas comprava a peça dele para trazer para trás. O risco [é] que você bota para puxar o outro e está sujeito a ficar com ele."
- "A novena havia aqui."
- "Tínhamos que lá estar todo o dia."
- "Havia a novena nove dias. Por exemplo, no tempo agora do milho, íamos agora à noite, dormíamos lá, de manhã havia a novena outra vez e vínhamos embora para seixar o milho e tornávamos a ir outra vez à noite, tornávamos a dormir e andávamos assim."
- "Naquele dia à noite não havia. A gente ia à noite e havia outra depois de manhã cedo para a gente poder ir. Mas naquele dia já não havia, havia outra vez no outro dia."
- "Era: hoje à noite, amanhã de manhã cedo."
- "Exatamente. Mas isso era quando a gente dormia lá. Mas depois naquele dia não havia nada, só no outro dia à noite é que iam outra vez."
- "No outro dia tornávamos a ir a seguir, íamos a pé por aí acima, tornávamos a dormir [e] no outro dia tornávamos a ir para baixo. Dormíamos lá nos colchões no chão e comíamos e estávamos para lá a fazer uns sonhos."
- "Todos contentes."
- " É. Era uma alegria naquele tempo."
- "A gente ia para o Santo António. Quando esteve lá o António Guterres (...) diz ele: «Aqui parece que o céu está mais perto.»."
- "Havia quem ficava lá. Os mais idosos, por exemplo, iam e ficavam lá."
- "E não vinha para baixo, estavam lá. Porque tem lá uns quartéis, tinham lá umas casinhas para ficar lá. Tinham era que levar o colchão de palha."
- "Qual colchão? Às vezes punha-se a palha lá no chão."
- "Mas o colchão era feito de pano. Eu ainda me lembro de dormir num colchão de palha, que tinha uma racha no meio e todos os dias havia que mexer na palha. E ao fim de uns quantos meses a palha ficava velha e havia que lha trocar."
- "Eu ainda me lembro, quando era pequena, que a minha avó - ela morreu tinha eu 6 anos - dizia-me assim: «Ó Marquinas, vai ali ao saragome.», chamavam-lhe o saragome - «Vai ao saragome buscar uma presa de palha para acender o lume.»"
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