Catálogo da Fábula na Literatura Portuguesa – CFLP
Catalogar a Fábula
A fábula, tantas vezes relegada para o terreno dos géneros literários menores, tem demonstrado uma perenidade assinalável, assentando numa tradição antiga que fundou um corpus temático fabulístico de grande estabilidade. Esta continuidade, que afeta sobretudo as temáticas desenvolvidas e os motivos que acolheu, não impede, no entanto, que se tenham verificado alterações significativas, e que estes tenham sido permeáveis a variações importantes, espelhando uma maleabilidade da fábula que poderia passar despercebida ao olhar menos atento. A variedade é tanto mais interessante quanto ela se dá num contexto temático particularmente estável, e afecta em especial as fontes ou os textos, e as variantes referem-se, muitas vezes às personagens, ou a motivos mais ou menos desenvolvidos. A fábula situa-se entre a constância e a multiplicidade de formas e, nessa medida, uma das funções de um "Catálogo da Fábula" será espelhar elementos de permanência mas, também, algumas transformações a que foram sujeitos os textos na sua evolução. Ao reunir o corpus das fábulas na literatura portuguesa, esse foi um dos objectivos que este Catálogo da Fábula na Literatura Portuguesa (CFLP) procurou alcançar, ao permitir que as entradas que o constituem sejam consultadas individualmente, ou agrupadas, e que as buscas por conjuntos de fábulas possam ser organizadas de diversas maneiras de modo a proporcionar cruzamentos diversos. Não se tratando, no entanto, de uma base de dados de textos, os elementos recolhidos e fixados servem fundamentalmente o propósito de oferecer o levantamento do corpus e a reunião de ocorrências, almejando-se, com este trabalho, constituir um recurso de consulta para investigações mais desenvolvidas sobre as fábulas em português.
É objetivo do CFLP repertoriar as fábulas na literatura portuguesa desde a Idade Média à Contemporaneidade, estendendo-se as suas entradas desde Afonso X, o Sábio, até ao início da segunda década do século XXI. Apesar da razoável extensão do corpus das fábulas catalogadas, a indexação que se apresenta não deve ser considerada exaustiva nem fechada, em parte, devido à existência de acervos fabulísticos que necessitam de ser transcritos e de textos por fixar que não puderam ser aqui considerados para efeitos de catalogação nem de análise crítica. Por outro lado, a produção escrita no nosso século demonstrou que é concedido à fábula um lugar relevante na literatura, o que, como é de crer, determinará o interesse de se empreender uma complementação do corpus agora apresentado num futuro não muito longínquo.
No CFLP foram consideradas coleções de fábulas, assim como fábulas interpoladas em obras de outros géneros literários, e retiveram-se tanto fábulas autónomas (em colecções ou antologias) como ocorrências que surgem de modo parcial, fragmentário ou, mesmo, por alusão. Foi particularmente complexo o trabalho de definição dos limites da fábula, sobretudo quando houve que tratar fábulas por alusão ou referência, dada a imprecisão do horizonte de referência que se apresenta na maioria destes casos. Em tais situações, optou-se por incluir neste catálogo as fábulas que, não tendo realização textual propriamente dita, através de criação, reescrita ou citação, total ou parcial, marcavam a sua presença por meio de um efeito de alusão ou de referência que pressupunham a convocação mental de uma fábula, ou do seu núcleo narrativo, tanto na mente do autor / editor como na do destinatário. (Lessing, 2008: 31-59; Perry, 1959, Blackham, 1985: 223-253). Tal é o caso, por exemplo, da alusão feita por Fernão Lopes à fábula "a raposa e o corvo" na Crónica de D. João. É uma característica da fábula a capacidade de ser reativada numa situação de ausência textual, e tal deve necessariamente ter reflexo na indexação dos textos que constituem este género.
Dificuldades de maior monta, ainda, se colocaram quanto à delimitação do corpus. À partida, o objetivo essencial deste catálogo era a indexação e catalogação do corpus da fábula esópica na literatura portuguesa. No entanto, cedo ficou patente que a fábula na literatura portuguesa não obedece estritamente ao espartilho desta designação, criada inicialmente por Fedro no prólogo ao livro IV das Fábulas (Perry, 1965: 299). Por outro lado, a própria designação "fábula esópica" mostrou-se errónea, dado que se aplica a corpora com naturezas muito distintas, que podem oscilar entre conjuntos de textos fixados em coleções que adquiriram o estatuto de vulgatas, incorporações e sincretizações várias que modificaram substancialmente o conjunto dos textos, e, ainda, a criação de fábulas de autor, fenómeno que se verificou significativamente no Barroco e depois do Romantismo. Não é, por isso, possível falar de uma tradição da fábula, porque, na verdade, estão em causa tradições diversas, com circulação independente por vezes, que confluíram noutras alturas, ou corpora fixados que foram posteriormente retalhados das mais diversas maneiras. A abertura e grande maleabilidade dos materiais no caso da fábula confirmam que a tradição não pode ser entendida como arquivo de textos, nem a memória como a sua conservação inerte (Ziolkowski, 1990: 8). Além disso, se observarmos a transição operada na significação do termo "fábula" entre o século XVII e o século XVIII, que coincidiu com o momento em que a fábula firmou os seus créditos de género literário, ao lado de outros, e deixou de ser um género predominantemente subsidiário da filosofia ou da retórica, podemos verificar que ela foi um palco onde se encenaram amplas reavaliações e reapreciações das ficções poéticas (Lessing, 2008: 31-59; Thomas, 1975), que estiveram relacionadas com a confirmação do género da fábula. Também o estudo da fábula na época contemporânea, nomeadamente após o surgimento do modernismo português, levou à constatação da existência de fenómenos de evolução da escrita literária que tiveram profundas repercussões nos modos como se processaram a recuperação e a evolução deste género. Fenómenos como estes, e outras particularidades da fábula na sua relação com o sistema literário contemporâneo, que mereceram até ao momento escassa ou quase nenhuma atenção por parte da crítica, são estudados nos artigos da História Crítica da Fábula na Literatura Portuguesa (HCFLP) que se debruçam sobre a produção fabulística nesta época. No Catálogo da Fábula, são repertoriadas ocorrências relativas à época contemporânea que levam em linha de conta a sua especificidade do contexto literário posteriormente a 1915, data em que coincidem a publicação do primeiro número da revista Orpheu e de "rosa de seda", fábula fundadora de uma particular perspectiva sobre este género literário e que é suscetível de ser considerada como um texto programático.
As dificuldades que se depararam aos investigadores no decurso da elaboração do Catálogo da Fábula, de que aqui se dá conta de um modo muito resumido, obrigaram ao aprofundamento da reflexão sobre este género literário. A sua elaboração foi, simultaneamente, resultado dessa reflexão e ponto de partida para o estudo crítico da fábula apresentado na HCFLP. O Catálogo da Fábula assenta na concepção da fábula como um género literário, não pretendendo constituir-se como um simples registo de entradas, mas antes oferecer a possibilidade de se proceder a cruzamentos e comparações seguindo vários critérios.
A metodologia usada no trabalho desenvolvido neste catálogo teve em conta as especificidades da recolha e as características do corpus em causa. Tratando-se de um corpo de textos muito disperso e, na sua esmagadora maioria, pouco conhecido e quase totalmente por estudar (Pereira, 2007), foi prioridade, nesta fase de catalogação, reunir ocorrências e diversificar as modalidades de consulta. Criaram-se campos de consulta simples ou cruzada, mas sempre considerando a fábula como o elemento de base de cada entrada.
Estrutura do Catálogo
O CFLP reúne, na data da sua publicação, mais de duas mil e quinhentas entradas, que correspondem a ocorrências individuais de fábulas. Uma das dificuldades na constituição do CFLP foi a existência de discrepâncias nas designações de variantes da mesma fábula. Considere-se, por exemplo, a fábula "a cigarra e a formiga", que pode ter por título "A discórdia" (Filinto Elísio), "Velha fábula em bossa nova" (Alexandre O'Neill) ou "Formiga até certo ponto" (José Alberto Braga). Para resolver esta questão, criou-se um campo denominado "título convencional da fábula", com o objetivo de permitir facilmente agrupar fábulas semelhantes que apresentam títulos diversos seja por opção do autor ou do editor ou, mesmo, que não exibem título – caso mais frequente nas fábulas interpoladas -, ou, ainda, cuja ocorrência surja segundo a modalidade da alusão. Para este campo fixou-se uma designação que fosse passível de identificar com facilidade a fábula em questão, mas que não coincide necessariamente com qualquer dos títulos efetivos das fábulas indexadas. Também se procurou com o "título convencional da fábula" eliminar possíveis confusões decorrentes de semelhanças de protagonistas e de situações em fábulas que correspondem a diferentes núcleos temáticos (ex. "o leão doente" ou "o leão velho").
Ao abrir a ficha completa relativa a uma fábula, o utilizador poderá consultar todos os dados relevantes sobre a entrada que pesquisa. No campo "título da fábula na obra" está indicado o título da fábula sempre que ele tem realização textual, ou, quando tal não acontece, a menção "inexistente".
No campo "1ª edição" é indicada a data em que a fábula foi publicada pela primeira vez ou, no caso de ela fazer parte de uma obra manuscrita, a data da edição princeps. Das obras que tiveram circulação em versão manuscrita dá-se as respetivas referências no campo designado "manuscrito". Os restantes dados catalogados reportam-se à "edição utilizada" cuja informação completa se encontra em campo específico com aquela designação. Elementos suplementares acerca das restantes edições figuram no campo "Fortuna editorial".
Para efeitos de catalogação, entendeu-se a categoria "autor" em sentido muito lato, incluindo neste campo o principal responsável pela fixação e edição da fábula indexada na obra referenciada, que poderá ser seu redator - seja ele o criador literário ou não -, tradutor, compilador, etc.. Os limites da autoria ou da atribuição das fábulas é uma das mais intrincadas questões teóricas levantadas por este género, e a fábula na literatura portuguesa não é exceção, suscitando problemas que devem ser atendidos casuisticamente, e que afloram em alguns dos artigos da HCFLP, por exemplo, ao estudar as traduções de La Fontaine.
Tendo em vista a contextualização do CFLP no corpus tradicional das fábulas, criou-se no campo "Catálogos de referência" um sistema de cruzamento de cada entrada com repertórios da fábula universalmente reconhecidos. Estão indexadas neste campo as fábulas que têm correspondência nos dois catálogos principais de fábulas: B. E. Perry (1965), Rodríguez Adrados (1987); as fábulas que se reportam ao corpus ovidiano referem-se à edição das Metamorfoses por F. J. Miller (1984). Existem, como é óbvio, fábulas cuja indexação original é realizada neste catálogo e que não podem, por isso, ter remissão para repertórios já existentes.
Em cada entrada está assinalada a "forma" da fábula, indicando se se trata de fábula em verso ou em prosa. Com o intuito de facilitar a busca ou de permitir um leque mais alargado de cruzamentos, são referidos os "protagonistas das fábulas" em campo próprio, tendo sido normalizadas as designações dos animais (ex: asno, burro, jumento → burro; delphim, golfinho → golfinho; bugio, macaco → macaco).
Para o registo de eventuais particularidades de edição da fábula indexada é reservado um campo de "Observações".
O Catálogo da Fábula na Literatura Portuguesa foi realizado com consultoria científica da Professora Doutora María Jesús Lacarra da Universidad de Zaragoza, e resulta do trabalho de pesquisa e de alimentação da base de dados dos membros da equipa do projecto PTDC/CLE-LLI/100274/2008, que para ele contribuíram na primeira fase de execução do projeto, conforme o calendário de tarefas estabelecido, devendo-se, ainda, ao apoio relevante prestado pela bolseira de pós-doutoramento, Márcia Liliana Seabra Neves (2011-2013), pelo bolseiro de investigação do Instituto de Estudos de Literatura Tradicional - IELT, Nuno Leão (2010-2011) e pelo bolseiro de investigação do projeto, Gustavo Duarte (2012-2013).
Lisboa, 1 de Setembro de 2013
Adrados, Francisco Rodríguez (1987). Historia de la fábula Greco-latina, vol. III. Madrid: Universidad Complutense.
Blackham, H. J. (1985). The Fable as Literature. London – Dover: The Athlone Press.
Lessing, G. E. (2008). Traités sur la fable. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin.
Miller, F. J. (ed.) (1984). Ovid Metamorphoses. vols. III-IV. Harvard: Harvard University Press, Loeb Classical Library.
Pereira, Luciano (2007). A Fábula em Portugal. Contributos para a história e caracterização da fábula literária. Porto: Profedições.
Perry, B. E. (ed.) (1965). Babrius and Phaedrus Fables. Cambridge/Massachusetts: Harvard University Press.
————, (1959). "Fable", Studium Generale, 12, 17-37.
Thomas, Noel (1975). Theories of the Fable in the Eighteenth Century. Nova Iorque-Londres. Columbia University Press.
Ziolkowski, Jan. M. (1990). "The Form and Spirit of Beast Fable", Bestia, 2, 4-18.