Sobre o Corpus - Anedotário

 

Fundo Michel Giacometti | Museu da Música Portuguesa

O Museu da Música Portuguesa tem depositado e disponível para consulta uma parte importante do Fundo de Michel Giacometti composto por contos, romances, provérbios, cantigas, orações, anedotas e outros registos de expressões orais, do qual faz parte, para além do conjunto de 233 adivinhas já reunidas no que designamos como Adivinhário[1], também este conjunto de 388 anedotas[2] que integram o Anedotário que agora apresentamos.

1. Recolha das anedotas

O corpus de anedotas analisado deriva de entrevistas realizadas a 58 homens e 37 mulheres com uma média de idades situada entre os 60 e os 65 anos, tendo o informante mais novo 11 anos e o mais velho 92 anos. Os registos realizaram-se em 16 distritos de Portugal Continental, sendo Bragança o distrito mais representado com cerca de 22% do total do corpus (87 anedotas)[3] seguido de Leiria (51 anedotas)[4] e Santarém (49 anedotas),  cada um dos distritos a representar 13% do corpus. As restantes anedotas foram registadas no distrito de Beja (36 anedotas)[5], Lisboa (28 anedotas)[6], Viana do Castelo (27 anedotas)[7], Vila Real (26); Faro (20); Porto (15)[8], Braga (15), Viseu (10), Guarda (6), Portalegre (6), Castelo Branco (4), Évora (2) e Setúbal (1)[9]. Em 5 registos não existe qualquer informação que permita concluir a distribuição pelos distritos.

A maioria destas anedotas foi recolhida por 27 equipas do “Plano de Trabalho e Cultura” entre Julho e Setembro de 1975. Entre as equipas que mais anedotas registaram destaca-se a equipa T/5 que, no concelho de Vinhais, registou 54 anedotas (14% do total), seguindo-se a equipa A/3 que, maioritariamente em Ourique, recolheu 36 anedotas. A equipa T/2 recolheu 29 anedotas em Miranda do Douro e a equipa E/4 registou 26 anedotas na Azambuja.

Na base de dados existem 6 anedotas recolhidas por Michel Giacometti, sozinho, e 39 anedotas recolhidas por 8 equipas que não pertenciam ao “Plano Trabalho e Cultura” mas das quais Giacometti fez parte junto com: 1) José Manuel Soares e Isabelle Cremers (Ferreira do Zêzere); 2) José Soares e António Pinto (Ferreira do Zêzere); 3) José Castela (sem informação sobre o local de recolha); 4) José Castela e Vicente Tavares (Torres Novas); 5) José Castela, Vicente Tavares e Elisa Moreira (Torres Novas); 6) João Gaspar e José Soares (Chamusca e Ferreira do Zêzere); 7) João Gaspar e Virgínia Vitorino (Tomar) e 8) Maria Emília Brederode Santos (Évora).

Existe ainda o registo de outras duas equipas que trabalharam na recolha das expressões orais, um pouco mais tarde: em 1978, a equipa constituída por José Soares e Rosário Borges Pereira, no denominado “Inquérito da Serra dos Candeeiros” (33 das anedotas registadas); em 1987, a recolha feita no Município de Loulé, sem dados sobre a equipa de recolha (10 anedotas).


[1] Disponível no site www.memoriamedia.net. [2] - No Fundo Michel Giacometti do Museu estão depositadas e disponíveis ao público 391 anedotas, no entanto, por fazem referência a nomes próprios de figuras locais e por questões de confidencialidade e ética três delas não foram publicadas nesta base de dados. Este critério de exclusão teve como exceção as anedotas com referências a figuras políticas da época, que mantivemos no anedotário. [3] Das 87 anedotas recolhidas em Bragança 80 foram contadas por homens e 54 foram recolhidas no concelho de Vinhais. [4] Do total de 51 anedotas, 48 foram recolhidas no concelho de Porto de Mós. [5] Do total de 36 anedotas, 33 foram recolhidas no concelho de Ourique. [6] Do total de 28 anedotas, 26 foram recolhidas no concelho de Azambuja. [7] Do total de 27 anedotas, 20 foram recolhidas no concelho de Arcos de Valdevez. [8] Todas recolhidas no concelho de Amarante. [9] Em 42 anedotas realizou-se a distribuição por distrito através da informação sobre o concelho. 


 2.Registo e classificação das anedotas

O “registo” corresponde, aqui, a um corpus de anedota recolhido a partir de uma entrevista com um informante ou grupo de informantes, existindo alguns registos de anedotas que contêm histórias ou corpus semelhantes, mas que correspondem a diferentes recolhas (informantes, datas e localidades de recolha).

Exemplos:

(i)

Juntou-se Salazar, Mussolini e Hitler. Juntaram-se e depois a ver quem é que tinha os químicos mais espertos. E adepois diz Mussolini:

- Os meus fizeram um avião que chegou mesmo ao céu!

Disseram:

- Não…não pode ser!

- Ó, cem milheiros mais ou menos…

Adepois, diz o outro:

-  Os meus descobriram um submarino, que chega ao fundo do mar.

- Não…não pode ser!

- Ó, cem milheiros mais ou menos…

E depois diz o Salazar assim:

- Os meus descobriram que as mulheres parem pelo cú!

Dizem:

- Não pode ser!

Salazar:

- A dois dedos mais ou menos…!

(Foi Salazar que ficou por cima de todos!!!)

(Informante: 71 anos, solteiro, sem escolaridade; Cicouro, Miranda do Douro, Bragança)

(ii)

Um português, um francês e um alemão juntaram-se e um diz:

“- Que novidades há lá pela Alemanha?”

“- Ah! As novidades é que agora requesitaram um submarino que anda dois dedos desviado do fundo do mar!”

Diz ele assim p'ró francês:

“ – Requesitaram lá agora uns aviões a jacto que aidam dois dedos desviados do céu!”

Voltaram-se para o português:

“ – Então e lá por Portugal que novidades há agora?”

“ – Ah! Aquilo é um país atrasado! Não há lá novidades nenhumas! Assim a caisa de mais novidade que há foi uma senhora que pariu um moço pelo cu!?”

Dizem eles assim. “ – Mas foi mesmo pelo cu?!”

“- Não! Desviado dois dedos.”

(Informante: s.i [1];  Santana da Serra, Ourique, Beja)

Cada registo corresponde a duas fichas dactilografadas: uma com a transcrição do texto da anedota, e outra com a caracterização da recolha efetuada através dos seguintes dados: Equipa de recolha; Data; Localidade; Nome do Informante[2]; Idade; Local de Nascimento; Estado Civil; Profissão; Habilitações Literárias; Registo sonoro e Observações. Existem ainda outras fichas de registo depositadas no Museu da Música Portuguesa, que contêm as informações originalmente manuscritas pelas equipas de campo sobre o conjunto das expressões orais recolhidas em cada entrevista, mas que não foram aqui trabalhadas. De salientar que grande parte do corpus analisado têm referência a um registo sonoro (cassete), embora estes não estejam disponíveis no Museu.

Do total das 388 anedotas do corpus trabalhado, Michel Giacometti classifica-as em dez grupos:

 Anedotas a esperteza dos camponeses (26);

 Anedotas acerca de padres (58);

 Anedotas com comicidade de expressão ou expressão de duplo sentido (15);

 Anedotas com temas religiosos (19);

 Anedotas das rivalidades nacionalistas (17);

 Anedotas do Bocage (24);

 Anedotas dúvidas[3] (56);

 Anedotas eróticas (18);

 Anedotas irónicas e pornográficas (132);

 Anedotas políticas (23).

As fichas de registo das anedotas encontram-se agrupadas no Museu da Música Portuguesa de acordo com a categorização acima referida, embora sem informação relativa aos critérios utilizados por Michel Giacometti para essa organização, assim como não existe nenhuma informação classificatória inscrita nas próprias fichas das anedotas. Existe apenas um documento com a referência à tipologia dos grupos mencionados, e as fichas encontram-se agrupadas e envolvidas numa folha de papel com a inscrição de cada uma das categorias a que se referem. Deste modo, não é possível assegurar que os registos das anedotas colocados em cada um dos grupos não possam ter sido deslocados de um grupo para o outro durante anteriores manuseamentos.

No corpus transcrito existem algumas anedotas curtas e outras que se podem classificar como contos anedóticos (existindo mesmo, em algumas destas fichas, o registo de “conto”). A grande maioria das anedotas deste espólio é claramente destinada a um público adulto, pelo seu carácter sexual e/ou político. Muitas das anedotas são “datadas” no tempo e “marcadas” por modos de vida associados à ruralidade.

Outra questão relevante é a opção das equipas de trabalho de Giacometti pela transcrição do texto tal e qual como foi falado, ou seja, mantendo a sonoridade da oralidade da anedota contada na redação do texto da anedota, o que foi respeitado neste anedotário, apresentando-se a transcrição integral dos textos originais.


[1] Sem mais informação sobre o informante. [2] Porque a linguagem, expressões e o conteúdo de algumas anedotas podem ferir susceptibilidades e por não existir, à época, documentação dos informantes a autorizarem a referência ao seu nome numa futura publicação, omitimos este dado na base de dados e respeitámos o anonimato do informante. [3] Não encontrámos nenhuma explicação que permita esclarecer que tipo de “dúvidas” surgiram quanto à classificação destas anedotas.


3. TIPO DE ANEDOTAS POR GÉNERO DO INFORMANTE E DISTRIBUIÇÃO GEOGRÁFICA

Sobre a distribuição das anedotas quanto ao género do informante é possível concluir que do total das 388 anedotas, 117 (30%) não possui qualquer informação que permita saber o género do informante. Das restantes 271 anedotas, a maioria, 171 anedotas (44% do total das anedotas), foi recolhida junto de homens e 99 anedotas (25,5%) junto de mulheres sozinhas ou em grupo. Uma anedota foi recolhida junto de um casal (0,5%).

Nos diferentes grupos de anedotas, quando há informação que permite saber o género do informante, regista-se uma diferença que superioriza o número de anedotas contadas por homens, que se mantém em quase todos os grupos [1].

A informação disponível que nos permite cruzar o número de anedotas por distrito com o número de anedotas recolhidas segundo o género do informante permite perceber que nos distritos onde se recolheram mais anedotas - Bragança, Leiria, Santarém e Viana do Castelo - os informantes destas anedotas são, em larga maioria, do sexo masculino. Com destaque para Bragança onde entre 87 anedotas recolhidas 80 foram contadas por homens. Por sua vez, no distrito de Lisboa a maioria das anedotas recolhidas foi contada por mulheres (23 anedotas contadas por mulheres e 4 anedotas contadas por homens).


[1] Destacando-se nas anedotas em que Giacometti teve “dúvidas” na classificação, seguindo-se as anedotas sobre “Bocage”, depois as anedotas “irónicas e pornográficas”, as anedotas sobre “a esperteza dos camponeses” e as anedotas sobre “os padres”. As exceções são as “anedotas com temas religiosos” (10 são contadas por mulheres e 5 por homens) e as “anedotas com comicidade de expressão ou expressão de duplo sentido” em que seis são contadas por mulheres e três por homens.


4. AS PRINCIPAIS TEMÁTICAS

Embora a classificação das anedotas compreenda os grupos acima descritos é possível sintetizar os seus conteúdos em quatro temáticas principais:

a) Temáticas de carácter erótico, sexual e/ou pornográfico;
b) Temáticas de carácter religioso;
c) Temáticas de carácter político;
d) Temáticas sobre o quotidiano rural (camponês).

4.1.Temáticas de carácter erótico, sexual e/ou pornográfico

A primeira evidência que surge na análise do volume de anedotas por categorias é que a maioria (num total de 150, perto de 40% do total do corpus) insere-se nos conteúdos de carácter erótico ou pornográfico (segundo a classificação de Giacometti). No entanto, se analisarmos o corpus das anedotas que estão classificadas dentro de outros grupos, verificamos que muitas delas contêm este mesmo tipo de conteúdos, embora a figura principal possa ser um padre (e nesse caso surgem classificadas como "anedotas sobre padres") ou um camponês ou camponesa (surgindo classificadas como "anedotas a esperteza dos camponeses"). As referências de carácter erótico e/ou sexual surgem, geralmente de forma explicita, através do recurso ao calão (sexual) ou à descrição, muitas vezes detalhada, da situação ou cenário em que a história se desenvolve.

Surgem, com evidência, jogos com os estereótipos de género, quer nas suas formas socialmente aceites quer desafiando aquelas, através da sua oposição ou inversão, sobretudo no que diz respeito ao corpo "objetivado" da mulher (e também do homem), às formas de sexualidade e aos diferentes papéis sociais dos homens e das mulheres.

Exemplo:

Havia dois noivos. No dia do casamento e quando se foram (a) deitar diz o noivo assim, benzeu-se e disse assim:
- Vou fazer um serviço que nunca fiz...
Diz a noiva assim:
- Pois eu já!

(Informante: s.i .; Juncal, Porto de Mós, Leiria)

Também o tema do casamento/adultério surge com frequência nestas anedotas, algumas vezes associado a histórias de separação física dos casais em consequência da emigração dos homens.

Exemplo:

Uma mulher tinha marido e um amigo. E ela andava sempre a dizer ao marido porque não ía ele para fora. Ele fez-lhe a vontade e garantiu-lhe que não vinha tão depressa. O amigo apareceu. Mas logo bateram à porta.
- "Quem é?"
- "É teu marido."
- "Para eu te conhecer vai dar uma volta grande e cantar devagarinho:
A minha mulher
É mulher de juízo,
Não abre a porta
Sem saber se é o marido."
Entretanto o amigo saiu e ela disse:
- "Vê lá o meu sentido que não te conheci."

(Informante: s.i .; Aldeia de Palheiros, Ourique, Beja)

O tema sexual surge também, em muitos casos, associado à temática religiosa, sobretudo, através da figura do padre enquanto agente de envolvimentos sexuais escondidos ou "secretos" com jovens solteiras ou mulheres casadas.

4.2.Temáticas de carácter religioso

Embora as anedotas que versam a temática religiosa não se restrinjam ao padre, este surge como uma figura de importante protagonismo nas histórias contadas, muitas vezes, associado a uma dimensão erótica e/ou sexual. Deste espólio de 388 anedotas, existem 58 que são especificamente classificadas por Michel Giacometti como "anedotas acerca de padres" o que é expressivo da sua relevância nos tempos e modos de vida retratados. Outras 19 anedotas foram classificadas em "anedotas com temas religiosos" que abordam a religião de forma mais ampla, existindo histórias sobre a igreja, a missa, santos ou seminaristas.

A figura do padre surge, nestas anedotas, quase sempre, caracterizada pela transgressão moral, pela perversão sexual e pelo uso (indevido) do poder religioso para fins pessoais, sobretudo sexuais. Neste sentido, o "padre" surge como um importante alvo de crítica social, do mesmo modo que lhe é reconhecida a importância enquanto ator social, pela centralidade que assume em tantas destas histórias.

Exemplos:

(i)
Havia uma mulher qu'era amiga dum padre, num é? E, depois, outa vez, foi à igreja e disse-lhe:
- Ó comadre, estas letras vermelhas, que estar na Sagrada Escritura, que é que querem dizer?
O padre, cum'era malicioso disse-lhe:
- Olhe! Querem dizer que a senhora ainda há-de ter um filho meu.
Bom. Inda foi p'ra casa e disse, assim, p'rò home:
- Ó home, sabes o que disse o padre? Qu'aqueles letras vermelhas, que 'tão na Sagrada Escritura, querem dizer qu'eu qu'hei-de ter um filho dele.
- Anh! Anh! – diz, atão, ele – hum!
E diz ela:
- Nem fu! Nem funetas! Sabes que tudo o que está na Sagrada Escritura tem que se cumpriri!

(Informante:19 anos, solteira, 4ªclasse; Vilar de Perdizes, Montalegre, Vila Real)

(ii)

E depois lá, já duma certa idade, uns setenta e tal anos, estaba para passar à reserba. E depois, como o padre da freguesia se ria mais para as beatas nobas do que para as belhas, claro, ela disse assim:
- Os padres num se salba nenhum! Bão todos para o Inferno!
E depois, disse assim o padre:
- Bão todos para o Inferno mas é a cabalo nas beatas, que a pé num bão...
(Mas é das bestas nobas, que as belhas já não nas querem, passsam à reserba!)

(Informante: s.i. ; Couto de Ervededo, Chaves, Vila Real)

4.3.Temáticas de carácter político

As anedotas de carácter político englobam as que Michel Giacometti classificou como "anedotas políticas" e como "anedotas de rivalidades nacionalistas" e focam figuras da história política da época (Oliveira Salazar, Álvaro Cunhal, Américo Tomás, Franco), com grande incidência em Salazar.

Exemplo:

Quando foi na morte do Salazar, claro, juntaram o povo p'ra fazerem o funeral ó Salazar; mas ond'havia lá um gajo que era meio idiota e depois disse ele:
- À frente, vai a bandalheira, (que era a bandeira) ao meio vai o bandido (que era o Salazar) e atrás vai o bandalho (que era o povo)...

Mas esse individuo, claro, não poude assentar o seu nome, senão era preso, que era ainda no tempo daqueles larápios, daqueles fascistas...

(Informante: 32 anos, solteiro, 3ªclasse; Montouto, Vinhais, Bragança)

Neste grupo englobam-se ainda algumas anedotas acerca dos partidos e ideologias políticas, como por exemplo, em relação ao comunismo.

Exemplo:

Tenho uma cadela que há dias teve cinco canitos. O meu filho que anda estudando em Almodôvar, eu levantei-me e disse-lhe eu assim:
- "Idalécio, a nossa cadela teve cinco comunistas."
O moço foi com aquilo no sentido. A senhora estava-lhe dando a lição e diz ele:
- "Minha senhora, o pai tem lá uma cadela, esta noite teve cinco comunistas."
No dia seguinte diz ele:
- "Minha senhora, a minha cadela tem dois comunistas."
- "Então ontem tinha cinco e hoje só tem dois?"
- "Pois é minha senhora, os outros três já abriram os olhinhos."

(Informante: s.i. ; Aldeia dos Fernandes, Almodôvar, Beja)

Nas "anedotas de rivalidades nacionalistas" surgem episódios que retratam estereótipos de nacionalidade, comparando portugueses com ingleses, franceses, espanhóis ou alemães.

4.4.Temáticas sobre o quotidiano rural (camponês)

Embora não seja nenhum grupo de anedotas especificamente classificada nesta temática, o quotidiano rural surge retratado com frequência, nos vários grupos de anedotas (muitas classificadas no grupo "anedotas dúvidas") quer no uso da linguagem (com uso, por exemplo, de termos concretos relacionados com a agricultura e a pastorícia) quer através de episódios que expressam os modos de vida locais. Existe um grupo de anedotas classificado como "anedotas a esperteza dos camponeses" que aborda, de forma mais específica, aquilo que podemos denominar como estratégias de "sobrevivência" de um grupo populacional com menos recursos e poderes, normalmente confrontado com novas situações e diferentes modos de vida (ida à cidade, ida à praia, viajar de comboio,...).

Exemplo:

(i)

Num café em Lisboa, entram dois alentejanos, vestidos com casacos de peles. Encontravam-se aí "uns meninos bonitos", que começaram a fazer pouco deles, dizendo:
- Mé, mé, mé...
Eis a resposta de um dos alentejanos:
- Ó colega, já viste aquele "gajo"? Há dois anos que lhe morreu o pai, e ainda agora lhe está a conhecer a pele!!!

(Informante: 71 anos, casado, 4ªclasse; Vilgateira, Santarém)

(ii)

Um senhor tinha uma loja num monte. Era no tempo em que não íam lá viajantes, nem camionetas. Montava-se numa mula e ía até Lisboa buscar as cargas de fazenda. Então quando chegou a uma loja a Lisboa, estavam lá dois caixeiros. Como ele tinha ar provinciano pensaram em gozar com ele.
- "Rapazes, que há aqui que se venda?"
Como tinha um ar assaloiado disseram-lhe:
- "Cabeças de burro."
E ele respondeu:
- "E olha, elas têm tido despacho, que eu só vejo aí duas."

(Informante: s.i. ; Santana da Serra, Ourique, Beja)

Este grupo menos favorecido, aqui denominado de "camponeses", não se restringe aos agricultores, contendo referências a um amplo leque de profissões das zonas rurais como o trabalhador agrícola, o sapateiro, o calceteiro, o merceeiro, o taberneiro, entre outros.

Percebemos, neste corpus, a anedota como uma expressão popular que abarca todas as dimensões da vida social da época, sem exceções ou interditos, revelando hábitos, costumes, crenças, linguagens, comportamentos e papéis sociais, através da crítica e do humor.

 

Filomena Sousa (Coordenadora do Projeto Memóriamedia/IELT) e Rosário Rosa (Investigadora Memóriamedia/IELT)

 

2014

 

Modo de referenciar este artigo:

Sousa, Filomena e Rosa, Rosário, (2014), “Anedotário – Fundo Michel Giacometti | Museu da Música Portuguesa - O Corpus” in Sousa, Filomena (coord), Anedotário-Memóriamedia. Alenquer:Memória Imaterial, CRL/IELT/MMP-CMC. (2 p.). Consultado (data) in http://www.memoriamedia.net/index.php/anedotario-corpus