Inventário PCI

Ossos e espinhas

Vimioso

"Ossos e espinhas" - Dois relatos verídicos sobre as travessuras de um jovem de Caçarelhos (relacionadas com comida).

 

 

Adélia Augusta, 1933. Caçarelhos.

Registo 2010.

Caso/ episódio da infância

Transcrição

Ossos e espinhas

 

«Outra vez, foram à Missa do Galo(1). Entraram todos prà(2) igreja e atão(3) foram prà tribuna, pò(4) coro, cá pa’(5) trás. E entrou o meu padrinho, co(6) meu pai e co meu avô – todos três.

 

Aquilo, a Missa do Galo, é muito demorada! Beijar o Menino(7) e tudo…Sai – a minha avó tinha deixado um gotelo a cozer, ao lume -, sai pra(8) fora, sem eles darem de conta. Chega a casa, saca o gotelo, abre a tripa, bota num prato, comeu; arrebanhou-o – muito osso - até o osso lhe tornou a atar co coiso. O gotelo!

 

Quando, no outro dia, foram a comer – só tinha osso! Diz meu avô prà minha avó:

 

- Heim?! Mas, atão… O gotelo num(9) tem nada!!! Tens que fazer… ‘Tá(10) cá um bocado de carne… E de outra coisa, que isto num dá nada! Não tem carne nenhuma! Isto só tem… Só tem ossos!

 

- Ai, valha-me Deus(11)! Atão, vêm…A mando los outros… Que é que comemos?! E agora diz que não tem carne!

 

- Olha! Queres ver?!

 

- Não seria aquela alma do diabo?! – Diz minha avô. – Não seria aquela alma do diabo?

 

E diz meu avô: - Não! Num foi! Que ele entrou connosco pela igreja e saliu(12)... (…)

 

- Foi ele quem… (…) Num foi mai’ nadie(?)(13)… Foi ele! (…)

 

Vai meu padrinho, com santa… Botou o minóculo(14)

 

- Foste tu, Francisco!

 

Vá, de carvalho(?)! Agarra e dá um pum! Desaparece. Três dias sem vir a casa! Esteve lá três dias em casa de uma mulher, que lhe chamavam a (…), ma’(15) namorava co ela. Teve lá em cada dela, lá governou, mas ó’pois(16) fartaram-se de… (…) Mandaram-no embora.

 

Outra vez, foi com um peixe de bacalhau. Meu avô tinha um peixe de bacalhau na dispensa, na adega. Pois entraram, chamara os amigos, levaram um bocadito de bacalhau, alguma risquita de bacalhau pra *buer a pinga*(17), pra que não fizesse mal.

 

Tinha um peixe lá grande, quando se deu conta só lá tinha a espinha do meio! (…) Diz assim o meu avô (chamou um amigo pa’ comer) (…):

 

- Ó valha-me Deus! Atão, agora isto! – Já só ‘tava a espinha! – Foi aquele diabo! Foi… Francisco! Vem cá! - (…) Olhe lá! Encarou-o com o peixe de bacalhau, a espinha – pimba! pimba! – deu-lhe muita porrada(18) com ela!

 

E diz assim: - Bati estes dois(?)… Foi ao caralho! Não me tornais a bater…

 

Desapareceu! – Zupa! [Bate uma palma da mão na outra.] - Não le(19) tornou a bater… (…) já lá não estava a espinha! [Risos]. Atirou com ela pa’ onde não lhe batesse!

 

Mas isto é… Pronto, isto foi tudo verdadeiro!»

 

Adélia Augusta Pires Garcia, Caçarelhos (Vimioso),Outubro de 2010

 

Glossário:

(1) Missa do Galo – missa celebrada na noite de Natal.

(2) Prà “para a” (contração da preposição pra com o artigo ou pronome a; uso popular e coloquial).

(3) Atão“então”, regionalismo de Portugal, de uso informal e coloquial.

(4) – “para o”, forma sincopada de prò (contração da preposição pra com o artigo ou pronome o), uso popular e coloquial.

(5) Pa’ – “para” (em próclise, usadode modo informal e coloquial).

(6) Co – “com o” (contração da conjunção arcaica ca com o artigo ou pronome o - ca+o -; uso oral, coloquial).

(7) Beijar o Menino – durante a Missa do Galo ir dar um beijo na imagem do Menino Jesus (sinal de homenagem e boas-vindas).

(8) Pra – “para” (redução da preposição “para”, sua forma sincopada,usadano registo popular, informal - reprodução da pronúncia).

(9) Num - não (linguagem, uso coloquial).

(10) ‘Tá – “está”- pronúncia popular do verbo “estar”, abreviatura oral, de uso informal e coloquial.

(11) Valha-me Deus!«usamos com o significado de «perante uma situação adversa, Deus é o único que ainda me vale, que ainda me pode socorrer». Tavares, Sandra Duarte, (24/01/2008), O verbo valer e a expressão «valha-me Deus». Ciberdúvidas da Língua Portuguesa. Consultado em 11-03-2011, Em linha, disponível na URL: http://www.ciberduvidas.pt/pergunta.php?id=22488

(12) Saliu – saiu (verbo sair conjugado, mirandês).

(13) Mai’ nadie – no caso, dado o contexto, mais nada; mais ninguém.

(14) Minóculo – monóculo (luneta com uma só lente correctora de visão).

(15) Ma’ – ‘mas’ (supressão de uma vogal, abreviatura oral, de uso informal e coloquial).

(16) Ó’pois “depois” (modo informal e coloquial, reprodução da pronúncia).

(17) Buer a pinga – beber qualquer bebida alcoólica, normalmente remete para beber vinho.

(18) Porrada – pancada, sova, tareia.

(19) Le – ‘lhe’ (pronome, registo popular e modo informal).

 

Referências bibliográficas e recursos online utilizados no glossário: Barreiros, Fernando Braga. (1917). Vocabulário barrosão. Revista Lusitana, Volume XX, Lisboa: Livraria Clássica Editora, Lisboa.

Barros, Vítor Fernandes & Guerreiro, Lourivaldo Martins. (2005). Dicionário de Falares do Alentejo. Porto: Campo das Letras.

Barros, Vítor Fernandes, (2006). Dicionário do Falar de Trás-os-Montes e Alto Douro. Lisboa: Edição Âncora Editora e Edições Colibri.

Barros, Vítor Fernandes, (2010). Dicionário de Falares das Beiras. 1ª. Edição. Lisboa: Âncora Editora e Edições Colibri.

Nunes, José Joaquim. (1902). Dialectos Algarvios (Lingoagem do várlavento) (Conclusão). Revista Lusitana: Arquivo de Estudos Filológicos e Etnológicos Relativos a Portugal, (1ª Série), Volume VII, Lisboa: Antiga Casa Bertrand.

Teixeira, Abade de Tavares. (1910).Vocabulário trasmontano (Moncorvo). Revista Lusitana, Volume XIII, Imprensa Nacional de Lisboa

Vasconcelos, José Leite de/Centro de Linguística da Universidade de Lisboa. Dicionário de Regionalismos e Arcaísmos (DRA).Em linha, URL/PDF, p.720

http://aulete.uol.com.br; http://alfclul.clul.ul.pt/clulsite/DRA/resources/DRA.pdf; http://michaelis.uol.com.br; http://www.ciberduvidas.com; http://www.infopedia.pt; http://www.mirandadodouro.com; http://www.priberam.pt

Caraterização

Identificação

Tradições e expressões orais
Manifestações literárias, orais e escritas
Ossos e espinhas
1933
Adélia Augusta
Trabalhadora agrícola reformada

Contexto de produção

Contexto territorial

Caçarelhos, Vimioso, casa de Francisco Augusto
Caçarelhos
Vimioso
Bragança
Portugal

Contexto temporal

2010
Hoje sem periodicidade certa. Encontros informais e iniciativas do Município de Vimioso

Património associado

Transmitidas aos serões, em quotidianos de trabalho e lazer.

Contexto de transmissão

Estado da transmissão
ativa
Descrição da transmissão
Agentes de tramissão

Residentes do concelho de Vimioso que são convidados para iniciativas do Município e Biblioteca de Vimioso. Principais actividades desenvolvidas que estas manifestações culturais:

Sons e Ruralidades em Vimioso

ANAMNESIS - Encontro de Cinema, som e tradição oral.

Feira de artes, ofício e sabores

(ver links em documentação)

Idioma
Português

Equipa

Transcrição
Maria de Lurdes Sousa
Registo vídeo / audio
José Barbieri
Entrevista
José Barbieri e Filomena Sousa
Inventário PCI - Memoria Imaterial CRL