Inventário PCI
Póvoa de Varzim
"A esposa bruxa" - Relato de um homem cuja esposa é bruxa e de como procedeu para lhe quebrar a maldição.
Ti Desterra, Póvoa de Varzim, Registo 2007
Transcrição
A esposa bruxa
E, como ia dizer… Mas… Como outras bruxas, como eram as bruxas que andavam no meio do Diabo. Conta-se uma história da Póvoa – e está relatada por muita gente – que havia um rapaz que casou. Casou. Passado tempo, diz assim a companha:
- A tua mulher é bruxa. Casastes com uma bruxa.
Soco.
- A minha mulher é bruxa?! -soco.
Havia um senhor de idade que… Desapartaram-nos, não é? E diz ele:
- Vá, anda aqui. Olha que é verdade o que ele está aqui a dizer, a tua mulher é bruxa. Tu casaste com uma bruxa. Eu já a vi. Nunca te disse porque não quero ferir-te, mas que eu já vi a tua mulher, já vi. De noite.
O rapaz começou a chorar e disse:
- Você não me diga isso… Como é que ela é bruxa? Então eu não vejo a minha mulher sair…
- Pois não; não, não vês…
- Como é que eu hei-de saber se isso é verdade, o que vós me dizeis?
E ele disse:
- Olha, uma noite tu ficas em casa. Elas saem às Segundas, Quartas e Sextas. Um desses dias que não fores para o mar, finge que dormes. Mas não durmas! E tu vês a história: tu vês como é verdade.
O rapaz assim fez. Diz ele:
- Tu mói-te de cigarros, que é para não adormeceres enquanto ela não vem.
O rapaz fez aqueles cigarros que se enrolavam nas mortalhas. Altas horas… Aquela hora, aquela noite dentro, levantou-se, disse uma oração em cima do homem… O homem estava acordado, acordado ficou. Se ele estivesse a dormir, ele não acordava. Mas, se estava acordado, acordado ficou. Ela – fiiiu – pela porta fora, não abriu a porta nem abriu nada. Em fralda de camisas (chamam-lhe em fralda de camisas. Hoje há as camisas de dormir; antigamente não era assim… Era umas camisas que elas dormiam com aquelas camisas. Na classe mais baixa, não é? Eu andava muito com aquela camisa: meia manga, por aqui… Ainda me lembro da minha mãe usar aquelas camisas, muito bem. E eu até usei, pequenina também, aquelas camisas. Tinha assim uma manguinha, bordadinhas aqui no peito…) E saiu. Saiu. O homem sentou-se na cama a fumar um cigarro atrás do outro…
Quase a chegar ao dia, vem a mulher. Na mesma forma que saiu, da mesma forma entrou. Ele estava assentado, logo ela ouviu:
- Então donde é que tu vens? -pegou numa navalha, que os pescadores quase sempre têm todos uma faca, que é por causa das redes e assim. -Tu donde é que vens?
- Ai… Eu fui… eu fui ali…
- Ali adonde? Onde é que tu fostes? Vês aqui esta navalha? Eu vou-te cortar toda às postas. Ou me dizes direito o que andas a fazer e amanhã…E amanhã! Por daqui a um bocado, quando me levantar, vou contar a toda a gente que a mulher que tem outro homem, que anda-me a montar os cornos porque sai de noite! -ele sabia que não era assim, não é?
Ela não queria dizer:
- Não posso dizer…
- Tens que me dizer, porque se não me disseres, amanhã, quando eu me levantar… -de manhã já era, quase de manhã! -…toda a gente vai saber. Vai saber o teu pai, vai saber a tua mãe, vai saber tudo, tudo, tudo! A minha mãe, os meus pais, os meus irmãos, tudo! Toda a Póvoa vai saber!
Como não se soubesse… Já se sabia, em parte da Póvoa já se sabia! A Póvoa era pequena, não era assim, não é? Hoje a Póvoa é grande. Diz ela:
- Ai… Eu não tenho culpa… Eu tenho que correr o fado…
Havia dois fados, como eu lhe expliquei: havia o que se expugnava e havia aquela que era no meio do Diabo. Esses iam para a igreja… E eu que dizia o meu pai: Como é que elas… se na igreja está lá Deus? Como é que elas têm poder para entrar? E o meu pai dizia: «O também entra na igreja.» O meu pai dizia: «O Diabo entra na igreja; também entra na igreja.» Que até depois nos contou uma história sobre o Diabo, o meu pai, como é que ele entrava na igreja.
E então o homem disse:
- Tens que me dizer.
Ela vai, começou a contar.
- Mas tu, se quiseres, -diz ela para o homem -tu podes-me quebrar este fado. -O que tens é que ter muita coragem.
Ele disse:
- Está bem. Eu vou fazer isso.
Então ela explicou-lhe como é que o homem tinha que fazer. As ruas da Póvoa eram todas em terra. Nós passámos aqui na Patrão Sérgio… (Tanto é que a minha mãe dizia que as bruxas que eram todas do Norte! [risos] Dizia ela, as bruxas são todas do Norte. Ouvia as histórias e depois ela dizia: as bruxas são todas do Ramalhão! Ela dizia. [risos])
- E fazes um Sanselimão[1] na rua toda, com um caco. E pões-te dentro do Sanselimão. E vais à ourivesaria e compras um Sanselimão em aço. -não é prata, é aço! Que eles tinham prata e tinham aço. -E pedes um sanselimão em aço e botas na tua mão; e amarras o Sanselimão. Vai protegido com água benta, com um terço… E eu sou a última. Elas passam, vão-te assobiar, vão-te chamar nomes, vão-te chamar tudo! Não te importes. Eu sou a última. Botas-me a mão e puxas-me para cima do Sanselimão. -então, um Sanselimão…
O rapaz assim fez. Àquela hora, diz ele que via uma gritaria, elas todas, para lá com o Diabo… Tudo em fralda de camisa! Mas na frente, que vinha o Diabo. Ela passou, olhou para ele mas não disse nada. As outras todas, meu este, meu aquele... Chegou por ali, passou: mulher ali. Elas:
- Tu pensas que te vais safar? Não te vais safar! Nós vamos-te fazer, nós vamos-te acontecer! Por este ponto, por aquele, assim e assado…
Acabou o fado delas. Tinha àquela hora de acabar, que vê-se o dia, aquilo acabava. As outras vieram todas para a volta do rapaz. E disseram:
- Olha, tu conheces-nos. Tu não sejas maluco de nos denunciar. Se tu nos denunciares, nós matamos-te. Queres tirar a tua mulher, tira-a. Mas ainda não está safa, a tua mulher. Ainda tens que ir à igreja, com uma borralha peneirada… E depois, sim, é que ela vai sair. -lá lhe explicou, como tinha se ser, como não tinha de ser. -Mas tu tens que te calar. Ai de ti que tu abras a boca para alguém.
O rapaz disse:
- Tirai a minha mulher disso, que eu não abro a boca para ninguém. Ficai descansados.
Mas o moço diz que ficou muito tempo doente. Muito tempo ficou doente. Eu sei, então ele viu aquilo tudo! Elas iam para os barcos (os barcos estão todos na doca aberta): tiravam os paus debaixo dos barcos, tiravam as pás todas para a areia… Os pescadores às vezes, quando iam para o barco, estava tudo um desalinho! Ela depois é que contava que eram elas que iam para aí fazer isso. Portanto, olhe: verdades ou mentiras, era o que se contava e o que se dizia.
[1] São Selimão, uma das siglas ou marcas poveiras que compõe o sistema de comunicação visual primitivo descoberto entre as classes piscatórias da Póvoa do Varzim. O sinal de São Selimão é tido como um símbolo protector, com poder para livrar as mulheres bruxas do seu fado / maldição.
Caraterização
Identificação
Contexto de produção
Contexto territorial
Contexto temporal
Património associado
Contexto de transmissão
Actividades promovidas pelo Município da Póvoa de Varzim, Biblioteca Municipal e Museu Municipal de Etnografia e História da Póvoa de Varzim.
Comunidade piscatória da Póvoa de Varzim