Inventário PCI

Cantigas no trabalho

Relato sobre as cantigas e a forma de cantar durante o trabalho no campo e desfolhadas.

 

Cancioneiro popular (cantigas de trabalho; polifonia vocal)

Transcrição

- "Nos campos a trabalhar, andávamos a trabalhar e a mocidade andava sempre a cantar, sempre, sempre. Depois o tempo foi passando, as coisas foram morrendo, mas foi uma pena, é uma pena.

Eu ainda hoje lembro que eu ia para os campos com os meus tios, com a minhas tias e gostava de cantar, então pedia à minha tia: 

«- Tia, cante comigo! Vamos lá cantar uma cantiguinha, para isto animar um bocado.»

Porque a família da minha mãe era uma família de raparigas, era uma família muito grande, (...) mas era uma família que cantava muito bem. E então, por exemplo, se estivessem nos campos a trabalhar no mês de maio ou nas lavradas e assim, ouviam-se elas a cantar. E conheciam, já conheciam a família das raparigas, já sabiam que é que era [a cantar]. [Diziam:] «Olha, as do Mata», que era a família do meu avô, chamavam-lhe a família do Mata, «As do Mata já estão no campo a trabalhar. Não vês? Olha, estás a ouvir? Estão a cantar.».

Eu lembro-me de uma ocasião irmos fazer uma desfolhada numa tia minha, já aqui na terra da minha mãe. Íamos de madrugada, ia eu, a minha mãe, a minha tia e o meu avô. Era de madrugada e havia muitos campos. Estávamos nós aqui, faz de conta estava outro campo ali onde estão aqueles pinheiros, viam-se as lanternazinhas, tudo a conversar. A gente não ouvia o que diziam, mas ouvia-se conversar.  E diziam eles assim, dizia a minha tia mais velha: 

«- Aurora, começa aí tu.»

É que a Aurora é que tinha de começar sempre. 

[Dizia:]

«- Mas vocês é que conhecem melhor as cantigas!» 

«- Uma qualquer!»

Depois cantava. Então era: cantava eu, cantava a minha tia mais velha e a minha tia mais nova. E cantávamos, eu cantava num tom de voz e a minha tia mais velha começava a ver o tom de voz que eu ia e ia cantar, chamava-lhe: «Tu cantas por dentro, eu canto por fora.», cantávamos a duas vozes. E então depois ia a minha tia mais nova e ia a minha mãe também, juntávamos as quatro, juntávamos aquelas vozes. 

Então estávamos a desfolhar e começamos a cantar nós as quatro. E estava o resto do pessoal todo, naqueles campos todos: tudo calou. E a gente continuou a cantar, eles calaram-se. Acabamos de cantar, só se ouviu uma voz lá longe: «Canta outra! Canta outra!». E a gente: «Olha, olha! Vamos embora!» que a gente [queria] era folia, era cantar. 

Era o que eu gostava, era a vida que eu gostava era aquela assim.

A gente quando ia nos campos, íamos para os campos e íamos para as desfolhadas, era uma vida muito alegre. Fazíamos as desfolhadas de madrugada. 

Tinha a minha tia mais nova, tinha a minha tia mais velha, tinha a minha mãe, ia o meu avô. Então estávamos à luz daquelas candeiazinhas a desfolhar e a única maneira que a gente tinha de passar o tempo e distrair era cantar. Então começava a minha tia: 

«- Aurora, começa tu. Começa aquela assim e assim.» 

«- Está bem, eu canto.»

E depois começava e começava a minha tia, começava a minha mãe e então juntávamo-nos todas e cantávamos todas. Isto quando estávamos a desfolhar o milho de madrugada.

Há uma que eu gosto muito, (...) que eu só a aprendi a trabalhar o linho já agora há poucos anos para cá, mas aprendi essa canção e eu gostava muito. Eu cantava-a e imagino-me a fazer o trabalho do linho, que é:

 

Ó linho, ó linho

Que lindo destino

Tens para nos dar

Amor e carinho

Belezas do minho

Toalhas de altar

 

Mondai, mondai, mondadeiras

Mondai o meu linho bem

Não olheis para o caminho

Que a merenda já lá vem

 

Ó linho, ó linho

Que lindo destino

Tens para nos dar

Amor e carinho

Belezas do minho

Toalhas de altar

 

[Risos]

Depois haviam aquelas que elas cantavam muito:

 

Mariazinha é tecedeira

Mariazinha tem um tear

Mariazinha vai para o estrangeiro

Ganhar dinheiro para se casar

 

[Risos]

A voz de dentro é a voz que eu tenho agora. Por exemplo, eu canto agora: «Ó linho, ó linho» e a voz de fora: [canta um tom acima] «Ó linho, ó linho», que ainda é uma voz mais fina que vai «destroncando», mas que faz um conjunto. Por exemplo agora num coro tem duas vozes, às vezes tem três, tem a voz mais forte, outra tem a voz mais fina: é essas duas vozes que a gente fazia. Eu cantava às vezes, quando podia, quando tinha voz que conseguia, eu fazia a voz mais fina, chamam-lhe elas a voz de fora, chamavam-lhe elas. E a voz de dentro era aquela voz normal, aquela voz mais forte.

Uma que elas gostavam muito que eu cantasse, que era A Chibinha. Cantavam muito:

 

Olha a chibinha mé mé mé

Olha a chibinha que não sabe de quem é

 

Quatro castanhas assadas

Quatro pingas de água-pé

Quatro beijos de uma moça

Faz pôr um velho de pé

 

Olha a chibinha mé mé mé

Olha a chibinha que não sabe de quem é

 

Ver se consigo. Por exemplo, se elas disserem: «Canta tal segunda voz», mas aqui não tenho. Eu cantava:

 

Olha a chibinha mé mé mé

[Canta um tom acima]

Olha a chibinha que não sabe de quem é

 

Lá está, a primeira voz e depois tinha que fazer a segunda para fazer o conjunto das duas vozes.

Tínhamos que cortar mato. Íamos para os montes, faziam, chamavam-lhe, as sortes. Iam à Câmara, tiravam uns papelinhos com uns números. [Diziam:] «Olha, vais a esta parte assim e assim, tens lá uma sorte.» E a gente ia, para cortar aquele - como é que se chama, que pica muito? - mato, cortar mato. E então íamos cortar. Tojo! Íamos cortar tojo com as enxadas. E eu gostava de ir, lá ia eu com a enxada na mão.

Tinha uma primita minha também, que também se chamava Aurora, era mais nova que eu. E um dia fomos para uma dessas sortes. E estávamos nós numa, eram bocados assim como isto aqui, mas compridos e a gente ia com a enxada. E essa primita minha veio passar férias, passar uns dias connosco, de Gerais de Lima para aqui, e fomos. Então tínhamos, cá chamam-lhe o limatão, para limar as enxadas quando elas começam a ficar cegas, que é para cortarem bem. E ela estava em cima de um penedozinho com o limatão na mão. E diz assim a minha mãe: 

«- Ó mulher, canta para aí um bocado, está a gente aqui assim.»

«- Está bem, eu canto.»

Comecei a cantar e era a minha prima [a fazer ritmos] com o limatão. Eu cantava e ela fazia o batuque com o limatão! Essas coisinhas assim."

 

Caraterização

Identificação

Tradições e expressões orais
Aurora Cristo

Contexto de produção

Contexto territorial

Passos
Passos
Valença
Viana do castelo

Contexto temporal

2022

Património associado

Contexto de transmissão

Estado da transmissão
Descrição da transmissão
Agentes de tramissão
Idioma

Equipa

Transcrição
Laura del Rio, Paulo Correia
Registo vídeo / audio
José Barbieri
Entrevista
Filomena Sousa, José Barbieri
Inventário PCI - Memoria Imaterial CRL