Inventário PCI
Póvoa de Varzim
"A bruxa e o peixe" - Relato de um homem cuja esposa é bruxa e de como procedeu para lhe quebrar a maldição
Ti Desterra, Póvoa de Varzim, Registo 2007
Transcrição
A bruxa e o peixe
Conta uma senhora que já morreu… Era a Tia Manas. E era muito velhinha… E ela, coitada, tinha um genro no meu barco. Um barco ainda de boca aberta. E aquela mulherzinha morava aqui à beira da Senhora da Lapa, mas vinha à praia… bem, com a coisa de eu lhe dar um peixinho para a ceia dela; ela e o genro. E para eu lhe dar um peixinho; e eu dava sempre um peixinho à senhora, prontos… e ela contava. Bem, a gente não tinha rádios nos barcos. A gente ia cedo para a praia, assentava-se na areia à proa dos outros barcos. Quem sabia trabalhar, levava uma meia para fazer, ou uma camisola ou uma coisa qualquer; quem não sabia, punha-se a contar histórias. E então a velhota contou esta. A respeito de a gente dar… Que ela dizia assim:
- Tu, minha menina, Nosso Senhor te ajude… Tu dás sempre tanto peixinho… Mas olha, minha menina, dá, que o Senhor ajuda-te. E olha que, a certas pessoas, não digas que não! Dá, nem que seja pouco. Eu vou-te contar aqui uma coisa, nossa menina, passada por mim! -ela assim.
Mas já uma senhora com 90 anos naquele tempo! Isto já vai há quarenta anos, portanto já hoje tinha 130 anos!
- O meu homem andava no mar numa catraia… -catraia era da pesca do alto; não era lancha, era catraia. - Uma vez chegou o barco, nossa Desterra… uma formosura de capatões, gorazes, chernes… Nós, todos contentes, faz uma pequena ideia…
- Pois, está claro…
Chegou aquela mulher à beira do barco e disse assim para o Mestre:
- Eu quero aquele capatão para a minha ceia.
E ele:
- Mas tu queres quê?! Eu que sou o mestre e dono do barco, não como capatão, e vais comer tu? Vai-te mas é a andar! Ainda se quisesses uma cascarra! Ou um cação!
- Não me dás? Ainda hás de me mandar a casa. -[palma]… por a areia acima.
A mulher do Mestre, quando se apercebeu, e essa Tia Manas, disse:
- Ai, João… O que fostes fazer, João… Desses-lhe o capatão, João! Olha que ouve-se dizer cá que ela é bruxa…
- Quero lá saber! Olha, se ela é bruxa, a minha mãe é feiticeira!
O homem, com aquela coisa… Venderam o peixito. Era logo o dinheiro repartido na hora. Vendia-se o peixe, recebia-se o dinheirinho […] e todas ali assentadinhas: tanto para a isca, tantos homens, tantas partes – era o dinheiro ali logo todo repartidinho, cada qual levava o seu dinheirinho para casa.
O barco, ao outro dia, foi para o mar. Nem um peixe dentro do barco. Já andavam assim já três ou quatro ou cinco dias, sem o barco tomar um peixe! O Mestre, desesperado. A Tia Manas:
- E eu, nossa Desterra, cheia de fome! Porque quem vai buscar uma cesta fiada à loja, outra cesta eles não dão!
- Mas vem à loja…
- Ah, não tomou mas, quando tomar, venho pagar…
Como pagava, ainda lhe fiou duas ou três cestinhas. Aquela mulher do pescador que fazia? Ia buscar a cesta, o coiso para levar na cesta, que era o farnel para lhes levar, e ela trazia alguma coisinha a mais, que era para eles comerem em casa. Está a compreender?
A Tia Maria Manas viu que o barco, três, quatro dias, não apanhou nem sequer um peixe, e os outros barcos cheios de peixe, disse para a Mestra do barco:
- Tu achas que isto está bem assim? Eu acho que isto que não está bem. Não está bem. Esta mulher… Não te disse que a mulher que era bruxa? Eu disse-te, tu não quiseste acreditar!
- Ó Tia Maria Manas, e agora como vamos fazer?...
- Como vamos fazer? Olha, temos ir rogar, a ver o que é que se passa.
- Fui eu com a Mestra… -ela a contar. - Fui eu com a Mestra, cachopa… -que ela falava assim. - Fui eu com a Mestra, nossa cachopa… A uma mulherzinha, que estava ali à beira de Nosso Senhor dos Milagres, chamava-se Ana. Ti Ana!
- Que quereis?
- Ó Ti Ana, valha-nos nesta nossa aflição, Ti Ana! Passou-se… O barco anda, anda, anda, para o mar e para a terra, nem sequer um peixe traz! Estamos cheiinhos de fome… Eu tenho onze meninos, todos pequeninos… Quero fazer uma panela de corda, não tenho uma panela ao lume…
A mulher disse:
- Olha, cachopa, ide à casa dela e pedi-lhe que deixe o barco pescar. Porque é que o teu homem não lhe deu o capatão?
- Ai, sabes como são homens… Eu, se estivesse à beira, eu dava-lhe…-por este ponto, por aquele…
- Só tens uma coisa a fazer: ide-lhe pedir a ela para deixar o barco pescar, porque senão nada feito.
Diz a Mestra:
- Eu não vou, antes quero morrer.
Diz:
- Tu queres morrer?! Se nós não formos, morro de fome eu com os meus filhos! Temos que ir.
Diz:
- Tia Maria Manas, vá você. Vá, por as almas, que eu não quero ir…
- Ai, tens que vir comigo, tu é que és a Mestra do barco. És a Mestra, tens de ir comigo.
A mulher, com penas ou com glórias, lá foi. Chegou lá, diz ela:
- Que quereis aqui?
- Ó fulana… Eu venho tão cheia de fome… Deixa-me o barco pescar, pelas almas…
- O teu homem… O teu homem é este, o teu homem é aquele…
- Ó fulana… Não te aflijas, minha amiga. Enche-me o barco de pescar, que todos os dias que ele vier do mar eu mando-te aqui um peixe.
- Eu disse isso ao teu homem, mas ele não queria acreditar! Eu disse-lhe! Olha, não tenho nem um peixe nas cavernas! -era as cavernas do barco.
Diz ela, diz a Tia Maria Manas, de joelhos:
- Ó minha menina, por as almas do Purgatório, estou cheiinha de fome! Eu não tenho nada para botar corda ao lume, deixa o barco pescar…
-Vá-se embora. Tia Manas. Vá-se embora. Eles por daqui a nada começam a pescar. Vá-se embora.
A mulher veio-se embora:
- Ai, Deus queira que sim… Ai, Nossa Senhora…
Chega o barco à terra… Ao outro dia, que eles iam hoje e só vinham amanhã, passavam a noite no mar. O barco trouxe um ror de peixe. A mulher chegou à beira do homem, disse:
- Ó desgraçado! O capatão maior que tens aqui, dá aqui à Tia Maria Manas para levar à fulana, desgraçado! Nós podíamos estar tão bem e estamos desgraçados por tua causa! Sabes que aquela mulher que é bruxa, desgraçado? Foi passado isto… -começou a contar.
E o homem disse:
- Sim senhora. A partir dessa hora, foi que… -eles sabiam as horas pelo sol, os pescadores sabiam -…começámos a pescar.
- Então, desgraçado, tu sempre que vás para o mar, de vez em quando manda-lhe um peixe, ou nunca mais pescas.
Diz a Tia Maria Manas:
- Minha menina, fui eu que fui levar o capatão. Cheguei lá… Fulana!
- Que quer?
- Anda aqui, minha menina. Olha, tenho este capatão, foi o maior capatão que apanhou.
- Então, tomaram alguma coisinha?
- Diz que tomaram. E tu, minha menina, não faças mal ao barco, minha menina. Que eu te juro: sempre que o barco vá para o mar, logo que eu possa, eu trago-te aqui.
Diz ela:
- Não, para esta semana não traga. Depois para a semana ou daqui a algum tempo, se me quiseres trazer um peixinho, traz-me, que eu não faço mais mal ao barco.
Diz ela:
- A desgraçada parece que ia em vento na proa do barco para o barco não pescar!
Histórias que se contam. Era as histórias que se contavam.
Caraterização
Identificação
Contexto de produção
Contexto territorial
Contexto temporal
Património associado
Contexto de transmissão
Actividades promovidas pelo Município da Póvoa de Varzim, Biblioteca Municipal e Museu Municipal de Etnografia e História da Póvoa de Varzim.
Comunidade piscatória da Póvoa de Varzim