Inventário PCI

Produção de sal

As salinas de Rio Maior, também denominadas de ‘marinhas da Fonte da Bica’ localizam-se a 3 km de Rio Maior, na localidade de Marinhas do Sal, “na zona sul da área protegida do Parque Natural das Serras d’Aire e Candeeiros, a 99 metros de altitude e ocupam uma área com cerca de 21 865 m2. Estas são as únicas salinas de interior atualmente em exploração em Portugal”

Nos dias de hoje, as salinas são constituídas por 470 talhos ou cristalizadores, de planta retangular e trapezoidal, cavados e delimitados entre si por tábuas de madeira ou muros de cimento. O aquífero salino provém de um poço com cerca de 9 metros de profundidade localizado na zona central das salinas. A época de funcionamento das salinas e extração do sal situa-se entre maio a setembro, e cada ciclo de evaporação do sal até à formação dos cristais dura, em média, sete dias. Este ciclo integra diversas fases e procedimentos: retirar a água do poço e encaminhá-la para os esgoteiros ou concentradores onde é depurada e evaporada aumentando a salinidade; colocar a água nos talhos; regar o sal; mexer o sal; rodar/rapar o sal; juntar e secar o sal em pirâmides nas eiras; carregar o sal para os armazéns.

Conhecimentos tradicionais da produção artesanal do sal.

Transcrição

Caraterização

Durante muito tempo, e até há poucos anos, a exploração das salinas fez-se por processos semelhantes, quando a água era tirada com baldes por meio da picota e todo o trabalho era realizado de forma exclusivamente manual. Tratando-se de um trabalho sazonal, a maioria dos salineiros eram também agricultores e acumulavam o trabalho das salinas na época de verão com o trabalho na terra (cultivo de vinha, batata, cebola, trigo, etc.) durante o resto do ano. Alguns dos salineiros eram proprietários dos talhos, enquanto outros arrendavam esses espaços para explorar o sal, dividindo a safra com os proprietários.

O trabalho nas salinas, inicia-se, normalmente, em maio, com a limpeza dos talhos e termina no final do verão, em setembro, com o seu armazenamento.  A primeira fase do ciclo de extração do sal consiste na limpeza das salinas, e dura, em média, todo o mês de maio.  Os talhos são raspados e lavados para que possam ficar livres de todos os lixos e impurezas antes de receberem a água do poço - “As águas da chuva com as águas salinas formam uma espécie de algas, uns limos, que precisam ser retirados” (José Casimiro).

A segunda fase, e uma das mais complexas em termos da organização tradicional dos salineiros, consistia na retirada da água do poço e consequente enchimento dos talhos e esgoteiros. A água era retirada através de duas picotas ou cegonhas, o que exigia um grande esforço físico por parte dos salineiros. Os pilares (forquilhas) destas picotas ainda estão presentes nas salinas, apesar de já não estarem em funcionamento, uma vez que a água é agora retirada por bombagem elétrica.

Uma vez que até à formação da cooperativa, os talhos estavam divididos por vários proprietários que exploravam o sal de modo particular, e sendo a água do poço indivisível, era necessária uma sólida organização em torno da sua distribuição. Essa organização obedecia a regras consuetudinárias, e tomou o nome de ‘lei da água’ ou simplesmente de ‘lei’, estipulando que a distribuição da água pelos talhos era feita de acordo com a proximidade da sua localização em relação ao poço. Assim, em primeiro lugar, quem tinha o direito à água era o proprietário do talho mais próximo do poço, e só depois se abasteciam os que se situavam em zonas mais afastadas. Todo o processo era realizado de forma manual, e a salina funcionava 24 horas por dia, uma vez que os salineiros tinham de aguardar a sua vez do direito à água.

Nesta organização, cada salineiro, proprietário de talho, tinha direito a retirar 100 baldes de água do poço de cada vez, existindo depois uma margem de 20 baldes, para que o próximo salineiro chegasse perto do poço. Todos os salineiros conheciam esta ‘lei’ e sabiam quem era o próximo a receber a água, pelo que quando estavam a terminar de retirar a sua água, gritavam pelo nome da regueira do próximo salineiro. Caso este não se aproximasse do poço, tapava-se o buraco para a regueira com barro, depois do último grito de chamada, que seria, por exemplo “Ou Norte ou barro!“[1] (Casimiro Froes Ferreira).

 Para além dos talhos, alguns proprietários também tinham os seus esgoteiros, que serviam para a depuração e evaporação da água (tal como os atuais concentradores) mas também para dar água aos talhos, enquanto tinham de esperar pela sua vez do direito à água.

Atualmente esta fase está muito simplificada porque, por um lado, a maioria dos talhos está integrada na cooperativa, o que facilita o processo de gestão da água e do sal, mas também porque a água é agora retirada do poço por bombas elétricas que a bombeiam para os oito tanques concentradores localizados na parte alta das salinas, com capacidade para cerca de 1 milhão de litros de água. Aqui, a água vai sendo depurada e evaporada à medida que passa de tanque em tanque,[2] aumentando o seu grau de salinidade[3] e daí é que desce, por gravidade, até aos talhos, através de mangueiras que percorrem toda a salina. Antigamente, a água salgada era encaminhada por regueiras, passando pelos babeiros (sítios por onde a água corria da regueira) para os diferentes esgoteiros e talhos.

A terceira fase do ciclo de produção e extração do sal realiza-se dentro dos talhos, e compreende as técnicas de regar, mexer, rapar e secar o sal. Nesta fase, os trabalhos ainda mantêm, essencialmente, a sua forma artesanal tradicional, apenas com algumas pequenas alterações dos instrumentos de trabalho e de alguns procedimentos que se adaptaram às obras de modernização dos talhos e das salinas e aos requisitos atuais do mercado, cada vez mais competitivo e exigente, em relação à qualidade do sal.

Os talhos ou cristalizadores, como já referimos, são espaços delimitados por pequenos ‘muros’ de madeira ou de cimento e, tradicionalmente, tinham o fundo em argila/barro. A argila sujava o sal, o que fazia com que existisse no centro de cada talho uma fileira de pedras, denominada de carreira, para onde os salineiros deslocavam o sal para o lavar. Progressivamente, a maioria dos fundos dos talhos foi sendo substituída por cimento ou pedra de calcário da Serra dos Candeeiros (que permitem uma maior limpeza e pureza do sal) pelo que as carreiras já não são utilizadas, embora ainda estejam presentes em alguns talhos.

Durante o período em que a água salgada está nos cristalizadores, existem alguns procedimentos que têm de ser feitos de acordo com as condições atmosféricas e com o ciclo de evaporação e cristalização do sal. Um desses procedimentos é a rega, que consiste em retirar água da barroca (pequena depressão existente em cada talho, que forma uma espécie de pia), e, com um cabaço, atirar para cima do sal em cristalização para aumentar a produção. O cabaço é um instrumento tradicionalmente construído em madeira e chapa, mas nos últimos anos, os próprios salineiros inventaram uma forma mais simples de construção, recorrendo a um balde de plástico e a um cabo de madeira.

Durante o período em que a água salgada está nos talhos, e de acordo com as condições atmosféricas, o sal tem de ser mexido para que não fique agarrado ao fundo. Este procedimento consiste na utilização da pá para a formação de algumas linhas paralelas, abrindo espaços no sal, sendo depois mais fácil de rapar. Esta técnica tem um efeito visual muito bonito nas salinas, formando vários padrões geométricos desenhados no sal.

Depois de cristalizado, o sal é ‘rodado’, ou ‘rapado’, uma técnica idêntica, mas realizada com instrumentos diferentes que justificam os nomes.  Anteriormente, quando o fundo dos talhos era de argila, utilizava-se o rodo (instrumento de madeira em forma de pá) e dizia-se que o sal era rodado. Quando os fundos passaram a ser de cimento ou de laje, o rodo foi substituído por uma pá de inox, dizendo-se agora que o sal é rapado. Ambos os instrumentos têm a função de retirar o sal do talho quando o processo de cristalização termina.

Depois de rapado, o sal é colocado nas eiras em forma de pirâmide e aí permanece a secar durante cerca de 60h, antes de ser transportado para os armazéns. Juntar o sal em forma de pirâmide permite acumular um maior volume de sal nas eiras, para além de servir de proteção para o caso de chuva, uma vez que a água escorre pela camada exterior da pirâmide, permitindo que o sal que está no interior permaneça seco.

A última fase do ciclo da extração do sal é o transporte e armazenamento do sal. Este trabalho era, tradicionalmente, realizado de forma manual, recorrendo a cestas de vime, sacas para colocar às costas, padiolas e carrinhos de mão, com os quais os salineiros carregavam o sal até aos armazéns. Atualmente, os carrinhos de mão são ainda utilizados dentro das salinas, percorrendo as ‘baratas’ (caminhos por onde se circula no interior das salinas) mas depois o sal é transportado para os armazéns nos dumpers que são pequenos veículos de carga motorizados.

Atualmente, são recolhidas nestas salinas, mais de 2000 toneladas de sal por ano, que é escolhido, embalado e vendido, sem qualquer tratamento químico, para Portugal e para vários países da Europa.

As salinas de Rio Maior têm, pelo menos, oito séculos de História e, segundo algumas fontes, foram anteriormente exploradas por romanos e árabes.  Como já foi referido, o primeiro documento escrito remonta a 1177, através do qual Pêro Baragão e sua mulher Sancha Soares venderam aos Templários “a quinta parte que tinham do poço e Salinas de Rio Maior, cujo poço partia pelo Este com Albergaria do Rei; pelo Oeste com D. Pardo e com a Ordem do Hospital; pelo Norte com Marinhas da mesma Ordem; e pelo Sul com Marinhas do dito D. Pardo” (Leal, 1878, pp. 198).

No último quartel do séc. XII, já existia uma exploração nas Salinas, embora conste que o poço primitivo estaria situado mais para Norte, no sítio denominado Marinha Velha.

Existem algumas variações na lenda local que é contada acerca da descoberta destas salinas. Alguns locais dizem que uma rapariga que acompanhava a pastagem de umas vacas, para mitigar a sede, tentou beber numa poça de água que aflorava num juncal. O sabor fortemente salgado foi-lhe extremamente desagradável e comentou isso mesmo quando chegou a casa. Foi assim que os seus familiares descobriram a existência de sal naquele terreno. Outra versão da lenda conta que depois da pastagem das vacas, os seus proprietários perceberam que os animais, depois de passarem por zonas mais húmidas, deixavam pegadas que ficavam brancas devido à concentração de sal naquela zona, e daí a descoberta da existência do sal.

Durante muito tempo o sal foi importante no comércio entre os povos como moeda de troca, sendo mesmo utilizado como pagamento de jornas (trabalho do dia), daí a proveniência da palavra salário. Para além de condimento na alimentação, era também utilizado como o principal modo de conservação dos alimentos, através das chamadas salgadeiras. Por todo este valor, o domínio do comércio do sal sempre foi sujeito a um grande controlo político. Acredita-se que o comércio foi o motivo que levou os Templários a comprar parte das salinas de Rio Maior.

A Ordem dos Templários, proprietária de parte do poço e salinas, foi extinta em 1312, tendo todos os seus bens passado para a Coroa, e sendo entregues à Ordem de Cristo, por mandato de Dom Dinis.

A exploração privada das salinas aconteceu até aos anos 70 do séc. XX. Com o envelhecimento de muitos dos salineiros, a carência de mão de obra, e sendo uma atividade pouco lucrativa, as salinas conheceram uma fase de degradação e algum abandono – “As salinas começaram a não ser rentáveis (…) porque os salineiros levavam o sal para as casas [armazéns de sal] e chegava a ficar lá 2, 3 anos (…) e as pessoas começaram a abandonar as salinas.” (José Casimiro, atual presidente da direção da Cooperativa). Assim, em 1979, foi fundada a Cooperativa Agrícola dos Produtores de Sal de Rio Maior, tendo como presidente o Dr. João Afonso Calado de Maia. A cooperativa foi criada com o “(…) objetivo de comercializar o sal dos cooperantes e promover ações de apoio aos mesmos, na transformação de salmoura e seu aproveitamento”.

A partir dessa data, as salinas passaram, maioritariamente, a ser geridas pela cooperativa, integrando atualmente cerca de 80 cooperantes, embora ainda subsistam alguns ‘talhos’ que são geridos de forma privada. A cooperativa, “(…) permitiu a colocação do sal no mercado, devidamente embalado, e parte dele moído, o que se traduziu na valorização e aumento da qualidade do produto e do seu preço”. Foram realizadas algumas obras de melhoria, inovação e expansão nas salinas, nomeadamente através da construção, na zona superior das salinas, de um espaço de armazenamento da água, com concentradores, que permitem o encurtamento do ciclo do sal,  melhorando também o ambiente circundante – “(…) Os morros de terra onde crescia vegetação infestante que conspurcava o sal foram substituídos por concentradores da salmoura extraída do poço comum.”

Depois de formada a cooperativa, ainda existiam cerca de 20 salineiros que trabalhavam nas salinas e entregavam o sal à cooperativa. Progressivamente, com o envelhecimento e morte de muitos destes salineiros, a cooperativa começou a ter a necessidade de contratar trabalhadores externos para assegurar o trabalho das salinas, o que constitui uma dificuldade dada a especificidade, dureza e sazonalidade das tarefas.  Atualmente, os cooperantes dividem os lucros da venda do sal de acordo com a dimensão (m2) da propriedade de cada um.

 

Identificação

Processos e técnicas tradicionais
Atividades extrativas
Produção artesanal de sal
Produtores de sal artesanal de Rio Maior

Contexto de produção

Cooperativa Agrícola dos Produtores de Sal de Rio Maior
1979
Coletivos/Comunidades

Conhecimentos tradicionais. Os direitos coletivos são de tipo consuetudinário.

Contexto territorial

Salinas de Rio Maior
Rio Maior
Rio Maior
Santarém
Portugal

Contexto temporal

2020
sazonal

Património associado

Instrumentos de madeira tradicionais.

Integradas na área do Parque Natural das Serras d’Aire e Candeeiros

Contexto de transmissão

Estado da transmissão
ativa
Descrição da transmissão
Aprendizagem informal em contexto familiar e de trabalho
Agentes de tramissão

Círculos familiares e profissionais

Idioma
Português

Equipa

Transcrição
Registo vídeo / audio
José Barbieri e Rosário Rosa
Entrevista
Filomena Sousa
Inventário PCI - Memoria Imaterial CRL