TEATRO POPULAR MIRANDÊS

Edição dos textos recolhidos por António Maria Mourinho.

Organização, introdução e notas de António Bárbolo Alves.

 

Apresentação:

São cerca de três dezenas os “colóquios” do Teatro Popular Mirandês (TPM) recolhidos por António Maria Mourinho, que se encontram no seu Arquivo. Estes textos encontram-se em diferentes estados de conservação e também em fases distintas de edição. Com efeito, António Mourinho não só recolheu os textos, preparou e organizou representações, como sonhou também com a sua publicação. Desconhecemos qual o tipo de edição que pensara fazer. Porém, em face de diversas notas que encontramos junto de alguns textos, estamos convencidos de que pensara fazer uma edição conjunta, profusamente documentada e enriquecida pelo seu conhecimento profundo dos textos e da região*. Mas por falta de apoios materiais – e dessa mágoa nos dá conta em algumas passagens – jamais logrou a concretização desse projecto. Ficaram “apenas” os textos, alguns manuscritos, outros já dactilografados e outros ainda já impressos a partir do computador. Todos eles foram já por nós publicados em edições digitalizadas (fac- similadas) e interpretativas, estando disponíveis no sítio web do Centro de Estudos António Maria Mourinho (CEAMM). Sabemos, contudo, que nem sempre a Internet está acessível, com a mesma facilidade, para toda a gente. Por isso, com o objectivo de divulgar, por outro meio, o TPM, reunimos neste CD esses mesmos textos e edições, aos quais acrescentámos esta apresentação, assim como o vocabulário de todos os textos ordenado alfabeticamente. Desejamos assim, para além da divulgação, deixar ao leitor outros meios que permitam compreender e enriquecer o seu conhecimento sobre esta particular forma de expressão da Terra de Miranda que, como veremos, tem raízes muito profundas e ligações extensas.

Segundo se pode ler numa nota manuscrita, que também se encontra no seu Arquivo, sabemos que era desejo de António Maria Mourinho que estes “colóquios” pudessem de novo circular entre o povo para que viessem a ser representados. Foi neste sentido que o CEAMM iniciou igualmente a publicação individual, em papel, de alguns

desses textos, para que eles possam ser distribuídos pelas Associações Culturais, pelos grupos de teatro, nas localidades com ou sem tradição teatral, para que, de novo, se lhes possa dar vida nos “trabados” mirandeses 2.

Mas o TPM não interessa apenas aos mirandeses. Embora a sua designação seja legítima e se fundamente nas particularidades que estas manifestações ganharam na Terra de Miranda, as suas raízes são múltiplas e as suas representações não são, de modo algum, exclusivas da região mirandesa. Desde Trás-os-Montes, onde o Auto da Paixão, por exemplo, se continua a representar3, até ao Minho onde, na aldeia das Neves tem lugar o Auto de Floripes, o mesmo que foi levado para África, nomeadamente para São Tomé, onde O Tchiloli ou Tragédia do Marquês de Mântua e do Imperador Carloto Magno e aquele Auto (também chamado de S. Lourenço), actualizam os velhos romances dramatizados pela pena de Baltazar Dias. Mas é talvez no nordeste do Brasil que o chamado Teatro de Cordel mantém maior vitalidade. Por lá se conservam ainda, para além das histórias ligadas ao ciclo carolíngio, a Vida de Roberto do Diabo, a Imperatriz Porcina, o João de Calais, ou seja, os mesmos textos (ou, pelo menos, os mesmos títulos) que podemos encontrar no TPM4.

Em relação aos textos recolhidos por António Maria Mourinho, desconhecemos a proveniência de muitos deles, pois poucos são os manuscritos recolhidos directamente das mãos dos “regradores” (forma como são chamados, em mirandês, os “ensaiadores”5 de teatro). Admitimos, contudo, que Mourinho os tenha copiado, devolvendo os cascos aos seus legítimos proprietários.

A verdade é que estes textos constituem uma das expressões mais valiosas e profundas da identidade mirandesa, ainda que continuemos sem resposta para as muitas questões que eles nos colocam. Quais as razões pelas quais eles se conservaram e foram representados, ao longo de vários séculos, até aos nossos dias, pelo povo mirandês?
Razões de predisposição psicológica ou mesológica das multidões? Raízes multisseculares persistentes e renitentes ao abafo dos séculos e das correntes

ameaçadoras que sobrevivem com as épocas? Condições naturais de adaptabilidade dessas instituições para o povo as receber, abraçar e aplaudir? Perguntava António Maria Mourinho6.

Ora, sabemos que nem as ideias nem as representações poderiam sobreviver de forma desligada das sociedades. Elas apenas têm verdadeira importância se se adaptarem às necessidades destas últimas e às mutações que elas sofrem. Por isso, nada mais falso do que considerar que estes “colóquios” se mantiveram desgarrados do ambiente sociocultural em que foram transmitidos. Isso não significa que eles possam ter uma interpretação imediata, ou que sejam reveladores de segredos cabalísticos só acessíveis aos iniciados. Mais do que falar de sobrevivência, os textos do Teatro Popular Mirandês são um produto complexo e sincrético onde se amalgamam as diferentes fontes que estão na origem dos textos, junto com os acrescentos, supressões, emendas e adaptações que os “regradores” e o povo, entenderam fazer-lhes. Neste sentido, eles merecem ser olhados com o apreço devido a outros monumentos e documentos constitutivos da identidade mirandesa. E, porque passaram de mão em mão, de geração em geração, de aldeia em aldeia, de tablado em tablado, devem igualmente ser considerados como legitimamente mirandeses.

No TPM encontramos textos de várias origens. Nele convergem as dramaturgias da chamada escola vicentina (Baltazar Dias, António Cândido de Vasconcelos, António Pires Gonge, Afonso Álvares, entre outros); os romances e tradições peninsulares e europeias, cristalizados em dramaturgias onde subsistem, de forma palimpéstica, alguns dos tópicos e mitos da nossa cultura (A vida de Roberto do Diabo, a Imperatriz Porcina, A tragédia do Marquez de Mântua, Os sete Infantes de Lara, são alguns exemplos); mas também os textos de autores locais (A pintura de S. Brás, Um dia de Inverno, Trovas de Carnaval), nos quais sobressaem o colorido da linguagem, os costumes, o castiço mais genuíno e ingénuo do génio popular mirandês.

O TPM responde assim a uma espécie de mundialização da arte popular e dramática que se tem afirmado como alternativa à cultura dominante, num espaço onde o abandono secular ajudou a criar formas de subsistência e de resistência impregnadas por valores universais mas coloridas pela tipicidade local e regional. O TPM desenvolveu-se e criou as suas raízes dentro desse microcosmos onde a língua, o comunitarismo, o orgulho telúrico associado ao isolamento e escudado numa consciência identitária e sócio-cultural, ajudou a alimentar uma rede de valores, baseado no verdadeiro comunitarismo e na solidariedade social. Se estas manifestações respondem, por um lado, à solidão mais profunda, são igualmente um poderoso grito contra o desespero, a frágil euforia de momentos grandiosos em que a insubmissão é escatologicamente orientada contra a injustiça, a imoralidade, a violência, mas também contra todas as formas de apropriação e mercantilismo cultural que, para além dos argumento estéticos e morais, pretenderam padronizar aquilo que é, por essência, vivo, e, por isso, em perene mutação.

1 Outro testemunho desta vontade de António Maria Mourinho em publicar um volume dedicado ao TPM é- nos dado por Valdemar Gonçalves quando nos diz que aquele investigador estava "a pensar publicar um novo volume do seu cancioneiro Tradicional exclusivamente dedicado a este tema [TPM], o que infelizmente não chegou a concretizar porque o tempo não lhe chegou". Ver Valdemar da Assunção Gonçalves "Teatro popular mirandês. Seguido de um inventário dos cascos representados nas Terras de Miranda", em José Francisco Meirinhos (coord.). Estudos mirandeses. Balanço e orientações, Porto, Granito Editores e Livreiros, 2000, p. 162.

2 Foram publicados os seguintes textos: Resumo da Sagrada Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo (publicado em 2005); A vida de Roberto do Diabo; Auto de José do Egipto; A vida de Santa Imperatriz Porcina; Famosa comédia dos sete Infantes de Lara; A pintura de S. Brás e A criação do mundo.

3 Sobre este assunto veja-se o excelente trabalho de Felisbela dos Santos Pinto, O Auto da muito dolorosa paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo de Francisco Vaz no universo do teatro religioso transmontano, Universidade de Trás-os- Montes e Alto Douro, Dissertação de Mestrado, 2007 [inédita].

4 Ver Luís da Câmara Cascudo, Cinco livros do povo, João Pessoa, Universidade Federal da Paraíba, 1994.

5 Em rigor o "regrador" não é apenas ensaiador mas, em muito casos, ele é também o "dono" do texto, seja porque o conhece de memória, seja porque detém a única versão escrita, que pode ou não ser da sua autoria, mas que pode alterar e modificar mais ou menos segundo a sua vontade. Recorremos, uma vez mais, às informações de Valdemar Gonçalves que nos diz: "O Regrador, ou ponto, é quem orienta as representações, distribuindo os papéis, é o ensaiador, ensina as figuras e dirige o espectáculo possuindo sempre uma grande intuição, gosto popular, iniciativa e invenção. Como ponto fica por detrás das colchas e vai dizendo baixo o papel de cada um e apita para fazer os intervalos." Op. cit,. pp. 158-159.

6 Terra de Miranda – Coisas e factos da nossa vida e da nossa alma popular, Miranda do Douro, Edição da Câmara Municipal, 1991, p. 389.