nome: Cândida Valente Calvinho
ano de nascimento: 1929
local: Vila Verde de Ficalho
freguesia: Vila Verde de Ficalho
concelho: Serpa
acervo: António Ferreira Lopes
transcrição:

Erom três irmãos, e um, os outros irmãos deziom qu’ ele que nã era esperto, e pôrom-lh’ o nome de Gato Sarrabulhêro, e nã lhe ligavom, mas el’ era esperto. E depois tinhom um jardim e todos os dias aparecia o jardim comido. Diz assim o mais velho:

–– Eu, à noite vou a ficar guardando o jardim a ver o qu’ é que nos come o jardim.

No outro dia de manhã, ’tava tudo, tudo, tudo comido.

–– I Jasus da minh’ alma, fiqui cá, e dêxi comer o jardim!

Diz o outro assim:

–– À noite vou eu!

Foi a gôrdar o jardim, bom, esse di’ atão é que já nã ficou nada. Comerom tudo. Diz o Gato Sarrabulhêro assim:

–– À noite quem vai sou eu!

Ah, ah, ah, ah...tu? Tal sari’ ó nosso Gato Sarrabulhêro gôrdand’ o jardim? Havia de ter que ver! Havia de ter que ver!

–– Bom, ê já lhe disse!

De manêras que foi à loja, comprou uma caixa de alfinetes, pregou-os aqui no colarinho, qu’ era p’ra em tendo sono, fazi’ ássim e picava-se, fazi’ ássim e picava- -se, fazi’ ássim e picava-se.1 E via o qu’ é que lhe vinha a comer o jardim. E arrenjou uma guitarra, e pôs-s’ a tocar a guitarra. De manêra que em lh’ entrando sono fazi’ ássim e picava-se.2 Cond’ ele vêi vir um cavalo branco, vêi vir um vulto.

–– Ai, vem além uma coisa, o que será que vem além? O que será que vem além? –– aproximou-se, era um cavalo branco.

E levou tamém uma arma p’ra matar o que fosse que viesse. Diz el’ assim:

–– Mesmo agora te mato.

–– Oh, nã me mates, e em te vendos em aflições, brada p’lo Cavalo Branco.

–– ’Tá bem, mas olha, peço-te p’ra esta noite o jardim se pôr aqui todo florido.

E o cavalo foi-s’ embora. Bom ele ficou na mesma, em tendo sono dava dois pendões mas nã se podia dormir porque se picava com os alfinetes. Daê nada vê vir outro vulto.

–– Já lá vem outro vulto, já lá vem outro vulto.

Chega chega, era um cavalo preto. Diz-lh’ el’ assim:

–– Mesm’ agora te mato.

–– Olha nã me mates, em te vendos em aflições brada p’lo Cavalo Preto.3

–– Atã ’tá bem, mas olha, eu agora faço-te logo um pedido: p’ró jardim esta noite se pôr todo florido.

Pronto. Daí a b’cadinho outra vez pendendo, mas o sono, mesmo que viesse ele não podia, tocava na guitarra e picava-se, e nã se podia dormir. Vê vir outro vulto.

–– Ai, já lá vem outro vulto. O que será aquilo?

Era um cavalo encarnado. Diz el’ assim:

–– Agora, mesm’ agora te mato.

–– Oh, nã me mates, em te vendos em aflições brada p’ro Cavalo Vermelho.

–– ’Tá bem, mas olha, quero que ponhas o jardim a coisa mais linda que há.

Bom, o jardim de manhã ’tava tã lindo tã lindo... Os irmãos levantarom-se pensando que vinhom a fazer pouco dele; chegarom ali, virom o jardim com tanta flor, tã bonito...

–– I Jasus, mas atão o que foi isto? A gente nã pode... Agor’o nosso Gato Sarrabulhêro gôrdou o jardim, e não o dêxou comer, e ’inda em cima florirom as flores todas... A gente vamos a corrê mundo, nã ficamos aqui, a gente vai corrê mundo. Diz el’ assim:

–– Vocês vão, ê tamém vou.

–– Nã vás.

–– Vou. Vou.

–– Vás com a gente, cada um apanha sê cavalo. Com a gente na vás.

E ele foi fugindo atrás dos cavalos. Dizem eles assim:

–– Bom, agor’ atêmastes a vir, e agor’ na podes dezer qu’ és noss’ irmão. Agor’ tens que dezer qu’és o noss’ criado. E agora com ’ma cortiça...–– arrenjarom numa cortiça e quêmarom-na, e pintarom-no todo de preto... –– E dezemos qu’ é o nosso criado e qu’ és preto, qu’ és um preto.

De manêra que ele marchou cum’ send’ o criado. Chegou lá a um sítio, chegarom a um sítio, havia uma festa, qu’ era três dias a festa p’ra ganharem a princesa: aquele que tivesse o cavalo mais bonito, e aquele que pulasse mais alto ganhava a princesa. E atã eles desserom:

–– Ah, a gente tamém fica cá na festa.

Forom ali p’ra ’ma pensão e desserom à mulher:

–– Olhe, a gente está aqui estes três dias, está aqui a festa, a gente ficamos aqui. Mas olhe, o nosso criado fic’ áqui com vocêi, e nã o dêxe saí’ de casa. Olhe qu’ é a ordem que lhe damos.

–– Sim senhor, fique descansado, fiquem descansados, qu’ ele nã sai de casa.

Os irmãos forom-s’ embora, e ele começou logo a pedir à dona da pensão:

–– Dêxe-m’ ir, e porqu’ê vou, e ê só me vou assomar, e agora nã vejo nada, e dêxe-m’ ir...

–– Atã mas os sês patrões desserom p’ra você não ir...

–– Ó, mas ê vou, mas olhe qu’ ê dou-lhe palavra, de certeza, cond’ eles chigarem ê já cá estou.

–– Atã váia lá mas olhe que nã falte!

–– Nã senhora, nã falto.

Bom, ele foi, levou sabonete, levou ’ma toalha, chegou ali a um barranquinho, lavou-se muito bem lavadinho e despiu a roupa, pôs a roupa ali detrás duma moitinha e bradou por o Cavalo Branco:

–– Valha-m’ o Cavalo Branco, e venha com os melhores arreios e com a roupa mais bonita que poss’ haver!

Ó, apareceu logo o Cavalo Branco, com ’ma roupa tão linda. Ele vesti’-se com a roupa bonita, e o cavalo vinha do mais bem preparado que podi’ haver. Montou--se no cavalo, foi, ó, o pessoal, era isto de gente.4 Assim que o vêem vir desserom logo:

–– Ei, o que vem além, aquele é que ganha com certeza. I Jasus, êh que cavalo... Atã e a pessoa cum’ ela vem...

Bom, el’ andou ali dando voltas, voltas, voltas, voltas, até que deu, picou as esporas no cavalo, o cavalo deu um salto, chegou quase à janela da princesa, e a princesa esvaída, contente, gostou dele logo, gostou logo dele... Pronto, acabou aquilo, marchou no cavalo, foi logo de repente, mudou de roupa, tisnou-se e foi p’rá pensão. Chegou lá disse:

–– Vêi minha senhora, ê na lhe disse que vinha primêro qu’ ós mês patrões?

–– Ai, pronto, já estou descansada.

Um dos irmãos dava-lh’ ares do irmão, e dezi’ assim p’ró outro:

––Aquel’ é o nosso Gato Sarrabulhêro, aquel’ é o nosso Gato Sarrabulhêro.

–– Nã sejas parvo! Agor’ o nosso Gato Sarrabulhêro, tinh’ aquelas roupas, tinh’ aquele cavalo, ond’ é qu’ o nosso Gato Sarrabulhêro tinha coisas daquelas?

–– É o mesmo, ê dá-m’ ares de ser ele.

–– Na sejas parvo.

Chegarom lá à pensão, foi logo a primeira coisa que perguntarom:

–– Atão, o noss’ criado saiu daqui?

–– Não, na senhora, na saiu, tem ’tado sempr’ aí e nunca chegou a sair.

–– Tão, ê na te disse? Ê na te disse que na era ele? Ê na te disse que na era ele?

Bom, no ôtro dia, a festa ôtra vez, forom outra vez à festa. Forom ôtra vez os ôtros à festa e desserom a mesma coisa à mulher:

–– Não, nã dêxe sair o noss’ criado daqui.

–– Sim senhora, fique descansado que ele nã sai! Ontem nã saiu hoje tamém nã sai.

Assim que os irmãos se forom embora, começou a pedir à mulher e a mulher disse:

–– ’Tã vaia lá, mas nã me falte, faç’ ó mesmo que ontem: cond’ els vierem já está cá.

–– Sim senhora, fique descansada.

Bom, foi, chegou lá ô mesmo barranquinho, ’teve-se lavando, ’teve despindo a roupinha, pô-la detrás da moitinha p’ra ninguém lha levar, e bradou p’ro Cavalo Preto:

–– Valha-m’ o Cavalo Preto com os melhores arreios que possa ter e com a roupa mais bonita que possa ter.

Daê nada vem o Cavalo Preto. Bom ele ’teve-se vestindo e montô-se, óh, ia a coisa mais linda que podi’ haver. Cond’ chigou lá, cond’ chigou lá, o pessoal assim que o viu:

–– I Jasus da minh’ alma, hoj’ inda vem mais bonito! É aquele! É aquele de certeza! Os ôtros ’stão aí mas ninguém ganha, quem ganha é aquele!

E a princesa esvaíd’ à janela gostando logo dele. Bom, andou à roda, à roda, à roda, dando voltas dando voltas, até que picou esporas no cavalo, o cavalo deu um salto «BÕUM», daquela vez já quás que chega mesmo à janela. Deu mais duas voltinhas, marchô-se, chigou lá ô barranco, pintô-s’ ôtra vez de preto, vestiu a roupinha velha e foi p’rá ’stalage.

O ôtr’ irmão no caminho:

–– Aquel’ é o nosso Gato Sarrabulhêro.

–– Cala-te, nã sejas parvo! Agor’ o nosso Gato Sarrabulhêro com’ma rôpa daquelas e um cavalo daqueles! Donde vinha ’ma roupa daquelas ô nosso Gato Sarrabulhêro e um cavalo daqueles?

–– Ê dig’ qui éi!

–– ’ Sejas parvo!

Bom, chegou cá, a mulher, a mulhé ficou muito contente cond’ o vêi:

––Ah, ’inda bem, já estava preocupada, nã chigassem os seus patrões e você na ’tivesse...

Bom, daê nada chegom eles, perguntarom log’à mulher:

–– Tão, o nosso criado?

–– Ai olhe coitadinho nã saiu daí, ’tev’ aí sempre, sempre.

–– Tão? Ê nã te dezia? Ê nã te dezia que na era ele, tão, ê na sabia que na era ele agora ond’ é qu’ele tinha roupas daquelas?...

Bom, no ôtro dia, er’ ôtra vez a festa, e já er’ ô dia de ganharem a princesa, foi, os irmãos forom-s’ embora, à festa, e ele fez a mesma tragédia: pediu à mulher, a mulher dezia-lhe que não, mas ele começou a brigar com a mulher e a mulher lá o dêxou ir. Chigou lá ô barranquinho, lavou-s’ ôtra vez, escondeu a roupinha na moita, e foi e disse:

–– Valha-m’ o Cavalo Vermelho, com os melhores arreios que poss’ haver, e que venha... e a melhor roupa que poss’ haver.

Oh, daê nada cheg’ ó cavalo, oh, esse di’ atão é qu’ er’ a coisa mais linda que havia! Um cavalo tão lindo, gordo, tã bonito, com ’mas rôpas tã bonitas. Vesti’-se, montô-se no cavalo e lá foi. Oh!, o pessoal, tanta palma, tanta palma, cond’ o virom, tanta palma, e tud’ desorientado, e a princesa à janela desnorteada, e o irmão dezia p’ró ôtro:

–– É o nosso Gato Sarrabulhêro.

–– Cala-te! ’Sejas parvo! Calado.

Depois foi, andou andou, dando voltas, dando voltas, dando voltas, até que foi picou esporas no cavalo, o cavalo deu um salto tã grande qu’ ele pulou p’ra dentro da janela, da princesa, e o cavalo foi-s ’embora. Bom, os irmãos, acabou a festa, tudo batendo palmas, e el’ assomado à janela saudando as pessoas mais a princesa, saudando tudo, e o cavalo foi-s’ embora. E os irmãos apois vierom. E no caminho o ôtro sempr’ atêmando, qu’er’ ô Gato Sarrabulhêro, qu’ er’ ô Gato Sarrabulhêro. Chigarom cá, a mulher tod’ áp’quentada:

–– Ai, e agora nã vem, e vêm os patrões, e ele nã ’stá cá, p’ra qu’ é qu’ ê o dêxaria ir, e p’ra qu’ é qu’ ê o dêxaria ir...

Chegom:

–– Atã o noss’ criado?

Ai veja lá, pedi’-me p’ra ir a ver a festa, e ê nã o qu’ria dêxar ir, mas dêxi-o ir, e agor’ inda nã voltou:

Tão, qu’ é qu’ ê te disse? Nã te disse qu’ era ele? Virás tu s’ er’ ô se não era.

Daê nada, um telegrama, (nesse tempo não havia telefones, (...) as coisas p’los telegramas), um telegrama p’rá pensão, a dezer que tinha sid’ ele que tinha ganhado a princesa, e p’ra irem a b’scar a mãe, p’ra vir assestir à festa. Manêras que houve apois uma grande festa, e a princesa muito contente, e o rei e tudo, e gostarom todos muito dele...

E por aqui nos ficaremos, e acabou o conto.

P’ra conto acabado...

1- A contadora meneou a cabeça para a frente, para a esquerda, e para a direita.

2- A cabeça para a frente.

3- Em te vendos: Quando te vires.

4- A contadora fez um gesto com os dedos de ambas as mãos a tocarem-se nas pontas e virados para cima. Esse gesto significa: coisa muito cheia ou coisa boa.