nome: Ana Gualdino Fraústo
local: Sobral da Adiça
freguesia: Sobral da Adiça
concelho: Moura
acervo: António Ferreira Lopes
transcrição

Este conto er’ ássim: uma mulher tinha uma filha, e um homem tinha um filho.

–– Nós ’temos aqui nesta rua ’temos os dois viúvos, nós vomos a casara; ’távamos melhora...1

–– Ora atã e logo os mês filhos?

Mas os filhos erom dela, er’ ássim.

–– Ora ê nã faço nada ôs filhos.

Mas depois dizem que nã fazem, mas fazem, pois. E antão:

–– Ê nã poss’ aguentar estes tês rapazes!

Já depois de se terem casado, começou logo a dezer:

–– Eu, nã tenho rapazes nenhuns, estar aguentando estes rapazes sem serem meus, na gosto disto. Nã sabes o que nós vamos a fazêra? Luvemos uns tramocinhos,2 e dizemos que vomos a b’scar um fêxe de lenha, e que vaiom p’lo rasto dos tramocinhos, p’rá acharem a gente. E eles ficom dêtados e a gente vai.

E ela –– as mulheres tamém são maganas, querem mais ôs amigos que nem ôs filhos –– e atão, abalarom, mas chegarom a um certo sítio onde eles qu’riom qu’ eles ficassem, já nã dêtarom mais cascas, p’ra eles se perderem.

[Os rapazes] abalarom, mas chegarom [àquele] sítio as casquinhas dos taramocinhos acabarom, e eles coitadinhos, já era cais de noite, nã sabiom p’ra onde haviom arear.3 Eles fizerom aquilo só p’ra eles ficarem no mato, p’ra nã voltarem p’ra casa. E atão ele, os rapazes c’mo nã têm tanto medo, já era cais de noite, e ele diz:

–– Olha, ê vou além àquele monte a pedir gasalho, e logo venho-t’ a b’scar, se me derem gasalho a mim, venh’-t’ a b’scar. –– (à irmã.)

Mas ele coitadinho, vinh’ á b’scá-la, mas perdê’-si; fez-se-lhe de noite e perdê’-se. E ela fez-se de noite e ficou ali, nã sabia p’ra onde havia ir, metê’-se numa rocha, num buraco que ’tav’ ali, mas ficou assim com as mãos,4 e veio um lob’ e comê’-lh’ as mãos. Ficou sem mãos. Ela ficou sem mãos. Depois já nã sabia nem do irmão, nem de nada. Já andava mêmo qu’ um bicho, empelotinha, comendo só mato e coisas daquelas. Depois, um dia foi p’ra baxo, p’ra baxo, escondida, em pelote já, e foi p’ra baxo, p’ra baxo, ’tav’ áli um manuala, e comi’ ás b’lancias... E aquele qu’ o gôrdav’ o manual dezi’ ássim:

–– Ó senhor rei, sabe lá, vai ali gent’ ó manuala, e nã é bicho! É pessoa. À noite vou a fazer uma ’spera.

–– Não. Nã vás. Quem vai sou eu.

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–– Disse o rei?

–– O rei ó nã sei quem era, ele andava com tropas; trazia tropas.

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E atão, enrolô-se num capote, escondê’-se, e ela lá por essa noite adiante, veio, começou: “te te te te te”, no manuala, a comê b’lancias. Tanto que viu qu’ havia p’r’ áli gente:

–– Quem é que ’tá aí? –– fugiu p’ró buraco. Ele foi, diz:

–– Sai daí! Senã ê preg’-t’ um tiro.

–– Ai ê na posso saíra.

–– Tã porquem?

–– Porque tou nua.

–– Toma lá o mê capote.

–– Mas ê nã posso pôr o capote.

–– Tã porquem?

–– Porqu’ ê nã tenho mãos.

–– Mêmo com os sacotinhos. Sai daí senã dou-t’ um tiro.

Ela foi coitadinha p’r’ áli de qualquer manêra, saiu mas era munto bonita. E tanto qu’ a viu, gostou muito dela.

–– Agora vás lá a minha casa. E comes lá, e elas têm que te dar rôpa p’ra te vestires.

Levou-a lá, or’ ás irmãs tanto qu’ a virom nã na qu’riom nem por sonhos:

–– Ai, agora com o que vem, agora com o que vem!

–– Dá-lhe lá p’raí roupa e comida p’ra esta....

E arrenjou-lhe logo ’ma casa, e ficou com ela. Mas ele foi p’ra lá, a servir lá p’ra ond’ ele tinha qu’ ira, e ela ficou na casa. Depois ela teve dois meninos, com ’ma estrela na testa mêm’ qu’ ele tinha. Mas elas cum’ erom muito maganas, escreverom p’ra lá uma carta qu’ ela tinha tido dois lagartos. E ele disse, que fossem lagartos, que fossem lagartixas, dêxassem-nos estar até qu’ ele viesse. Mais sabia el’ o qu’ elas erom.

–– Ôlha, nã sabes o qu’ ele mandou a dezêra? Que mandes a fazer um alforge, que metas um de cada lado e que te vaias a corrê o mundo. –– era mintira! Forom elas.

Ela coitadinha mandou a fazer um alforge, meteu um menino em cada lado, foi a correr o mundo. Chegou a uma r’bêra muito cheia, e ’tava uma velhinha que era Nossa Senhora; ’tava do ôt’o lado. Diz-lh’ assim:

–– Ti velhinha, ist’ aqui é muito fundo!

–– Sim, aí nã podes passara. Vai a passar ali acima.

E ela foi, ia dirigida por Nossa Senhora, foi ali acima a passar. E cond’ chigou ô meio da via da água, o alforge mexeu, e ela coitadinha pensou qu’ o alforge que se tinha rompido, e qu’ os rapazes qu’ iom p’rá água. Foi num ’stante a fazer assim com as mãos, e cond’ vêi já tinha as mãos. Cond’ meteu ali os meninos, tinha os sacotinhos, e depois... ... ... E começou a chorar, e ’tirou-se p’rô outro lado onde ’tav’ á Nossa Senhora. Ela disse-lhe:

–– Porqu’ é que tu choras?

–– Ai ti velhinha, atã nã hê’-de chorara, atã nã vêi qu’ ê nã tinha mãos?! E agora tenho aqui as minhas manitas já. Atã o que foi isto?

–– Sim, agora tens já aí as tuas manitas. E agora nã sabes o que fazis? Vás por esta vered’ ácima, além àquele monte lá acima. O rei há-de aqui aparecêra, às perdizes, com as tropas, e há-d’ apanhar sete perdizes, e hã’-de as queimar todas. Ele há-de os mandar, as tropas, pois á ássar aquilo, –– (porque er’ á mulher do rei, mas nã tinha mãos cond’ eles a conhecerom, punhom-s’ a olhar p’rá mulher, e as perdizes abrasavom-se.) –– e pões os tês filhos na vereda, e eles nã dizem nada a nenhum, mas cond’ o rei passara, eles vã’-lh’ a tomar a abênçoa e a dar-lhe um bêjo, e dizem-lhe qu’ ele qu’ é o pai.5

Ela foi, coitadinha, foi pidi gasalho lá ô monte. Os do monte nã sabiom o que se passava.... Chigou, os rapazes na vereda. Dali a (…) eles às perdizes.

–– Vaiom lá ássar uma perdiz.

Iom-n’ ássar...

–– Ai senhô rei, tem que nos dar ôtra que já está quê’mada.

Já tinhom sete quê’madas.

–– Agora mand’-os a prendêra. Atão agora... !? –– punhom-s’ a olhar p’ra ela, esqueciom-se das perdizes. Era uma coisa que dava que fazer n’ a verdade!?

E atão:

–– Senhô rei, desculpe-nos, mas o senhor vai lá com ’ma perdiz e quê’má tamém. E quê’má.

–– Atã vá lá, agora vou eu. Se a quê’mar não os prendo, mas s’ ê nã na quê’mar, vai tudo preso.

Agarrou o caminho, zangado, tanta perdiz tudo quêmado! Os rapazes sairom-l’ ô caminho, os dois.

–– Cá s’ ábênçoa pai! –– nôtro tempo tomavom n’ ábençoa, hoje não. –– Dê cá a su’ ábençoa pai!

–– Tã ê sou sê pai?!

–– Sim senhor. O senhô rei é nosso pai. Ôlhe lá a ’strelinha que nós temos aqui, nã é igual à sua?

–– Atã e o que ’tã vocês aqui fazendo?

–– ’stemos aqui com minha mãe.6

–– Atã onde ’tá sua mãe?

–– Tá além no monte.

Ele vai, já ia com aquilo na cabeça. Chigou lá, encara-se com a mulher com as mãos; atã ele nã havia conhecê a mulhé dele? Cum’ é qu’ele nã lh’ havia dar que fazer dêxá-la sem mãos e logo já ter. Chegou lá, pôs a perdiz no lume, óh, nunca mais ele soube da perdiz.

–– Atã mas, você nã é a minha mulher?

–– Sou sim, já na me conheces?

Ora, começou depois a chorar e a rir ô mêmo tempo, e formô-s’ um... forom a chamar a velha: «Atã mas quem é que foi que te fez isto, e c’m’ é qu’ ist’ aconteceu?» E contou-lh’ o qu’ elas tinhom feito e aquela coisa toda, e atão fizerom um grande festejo e...

–– Atã e agora o que queres tu qu’ ê lhe faça? Às minhas irmãs?

–– Quer’ qu’ as ates ali ô rabo do cavalo, e corras a cidade toda com elas. E uma cadêrinha p’rá cama. Uma cadêrinha p’ra subir p’rá cama, dos ossos delas.

Judiarom munto.

 

1- Em Sobral da Adiça, local de recolha deste conto, ouve-se com frequência: “estemos” por “estamos”. A mesma troca de vogal acontece também com outros verbos. Aqui a contadora omite a primeira sílaba e pronuncia: “temos” que, tomando-se pelo verbo “ter” tornaria a frase estranha.

2- Luvemos: levamos. (Pres. ind. v. levar.) A conjugação é: 1. levo; 2. levas; 3. leva; 4. Luvemos / levemos; 5. (vocês) levom; 6. levom. “Nã sabes o que nós vamos a fazera? Luvemos uns tramocinhos, e dizemos que vomos a b’scar um fêxe de lenha”. (Ct. 18.)

3- Arear é um verbo intransitivo que significa “perder o rumo; desnortear-se”. Fonte: José P. Machado, coord., Grande Dicionário da Língua Portuguesa, vol.I, C. Leitores, 1991. Veja-se o uso do verbo com sentido oposto, justamente: rumar, dirigir-se a…

4- A contadora pôs as mãos atrás das costas.

5-Abênçoa é forma dialectal de bênção.Tomar a abençoa, é a expressão usada para designar o acto de o filho pedir a bênção do pai. Era, segundo sabemos, um cumprimento diário. Já não se usa. Ocorre-nos contar o caso ouvido em Vila Verde de Ficalho, de um rapaz que, de tanto dizer a frase usada para pedir a bênção do pai, a pedia dizendo: “cássábença pai”; que era a sequência resultante da abreviação / facilitação da dicção da frase: “Dê-me cá a sua abençoa pai.” Parece que o cómico da situação residia na percepção geral de que nem o próprio já se dava conta das palavras que dizia, aliado ao efeito sonoro resultante da palavra prosódica abreviada “cássábença”, i.e., cá a sua bênção, após a perda de dê-me. (Aos contadores não passam despercebidos estes efeitos sonoros resultantes do uso quotidiano da oralidade, construindo e recriando, com eles e a partir deles, narrativas, geralmente para rir. Cf. Sobre este aspecto os contos n.ºs: 55, e 64 desta colecção.)

6-’stemos.Cf. notas 2 e 3.