nome:
Delfina Cunha
ano nascimento:
1938
freguesia: Santo Quintino (Localidade - Fetais)
concelho:
Sobral de Monte Agraço
distrito:
Lisboa
data de recolha: 2013
 
 

Inventário PCI

Os cerejais

Sobral de Monte Agraço

"Os cerejais"- Descrição do ciclo da cereja, desde a apanha à revenda, passando pela construção dos cestos e dos maquinos.

Delfina Cunha, Ano de nascimento 1938, Fetais, Sobral de Monte Agraço.

Práticas Culturais – actividade agrícola

Transcrição

Os cerejais

 

A gente, pelo menos aqui em Fetais, era ver aquela que fazia o avental mais bonito para levar para a cereja. Mas a gente, pelo caminho, levava o avental posto, um lenço de cachené muito bonito pendurado no cabaz… E depois, chegávamos ao cerejal, aquele avental era tirado – o lenço não, que era para estar na cabeça, porque a gente em cima das árvores, se não, esgadelhava-se toda e não se via a cereja. Só o que se tirava era o avental e o nosso almoço, a nossa governita, ficava na adega.

E depois há uma coisa muito importante que eu acho que nenhuma mulher ainda te explicou, pelo menos naquilo que eu vi, naquela reportagem que eu vi. A cereja é a fruta mais melindrosa que temos no nosso país, na França e nos outros países, porque eu também já vi a fruta, a cereja na França. Há um pé que tem duas cerejas: uma está madura, a outra está verde. Essa cereja tem que ser apanhada com a unha – a que está madura, para não afectar a que está verde, para a verde lá ficar, para amadurecer para o segundo ou para o terceiro apanho. Porque aquilo leva mondas; a cereja leva mondas. E eu acho que ninguém ainda fez essa explicação. A cereja leva mondas porque há umas que amadurecem mais cedo, há outras que amadurecem mais tarde. Conforme é a floração, conforme é depois o apanho, porque há árvores que, nas pontas, dão as flores mais tarde, nos meios, dão as flores mais cedo e têm que ser mondada sempre.

Depois a cereja é posta dentro de cestos – era! Agora não há cerejeiras… Era posta em cestos. Cestos, não é maquinos! Era cestos brancos feitos de salgueira branca. E a salgueira era descascada. E depois quem fazia estes cestos era o Pirolhas, um homem chamado o Pirolhas, que era da Gataria. E esse homenzinho é que fazia os cestos para a cereja e é que fazia os cabazes de cerejeiras. Lindíssimos, lindíssimos! Eu tenho uma fotografia de um cabaz cerejeiro que é linda, linda, linda, linda, feito por esse homem. E já houve muitos outros homens: há um em Santana, havia outro aqui na Abadia que também fazia cabazes cerejeiros, mas eram primos daquele cabaz cerejeiro. Não sei se ele ainda hoje é vivo. É da Filomena do Praia. Era um cabaz lindo, lindo, lindo. Tinha o mesmo feitio dos outros, mas mais bem equilibrado, a grossura da salgueira…

E então a cereja tinha essa paciência de ser apanhada com a unha. E os cerejeiros – havia um rancho de mulheres e havia sempre um cerejeiro no cerejal. E o cerejeiro dizia assim:

- Eh, raparigas, cuidado! Não apanhem cereja verde porque a gente para a semana apanha mais, a gente vem cá outra vez.

E depois a gente, à hora de almoço, cada uma trazia um cesto de cereja para a adega da Dona Mimi. Depois, aquelas que tinham mais jeitinho para fazer os caculos, ficavam a fazer… Ia-se apanhar feto, ia-se apanhar parra… Faziam-se os maquinos e depois enfeitava-se tudo, os maquinos, com as cabecinhas da cereja para cima. Ficavam lindas!

Depois havia as galeras. Nessa época já era o Joaquim Lóio que levava na camioneta, mas antes de mim, antes de mim e da minha mãe, havia as galeras de quatro rodas, duas grandes atrás e duas pequenas à frente, puxadas por quatro moares – ou dois machos ou duas mulas, pronto; mas era quatro bestas dessas – e levavam, ajuntavam as cerejas do Manuel Lóio, do António Custódio, do Joaquim Lóio, da Quinta de Valverde – aqui na nossa zonasinha pequenina, não é? E esses maquinos eram levados para Lisboa, para a Praça da Ribeira, para os revendedores que lá estavam para vender as cerejas aos compradores (não havia supermercados): às lojas, às praças pequenitas e isso assim.

Depois, ao fim não sei de quantos dias (isso não te posso explicar ao certo…) os donos das cerejas ou recebiam em casa o dinheiro, vindo pelo almocreve, ou recebiam um recado para lá ir a Lisboa receber o dinheiro das cerejas. Era assim; isto é a realidade.

Havia aqui muito. Aqui havia o António Custódio, que tinha bastantes propriedades dele e comprava também cerejais a outras pessoas; havia o senhor Manuel Lóio, que também tinha muita propriedade e em todas elas tinha cerejeiras; o Joaquim Lóio, que também tinha muitas propriedades e também em todas elas tinha cerejeiras. E cada um destes senhores tinha quatro, cinco mulheres a apanhar a cereja por conta deles. Depois, mais tarde, havia aqui o António Pipa, que também não tinha cerejais dele, mas comprava, já eu… Isso já eu era adulta. Prontos, eu era casada há muitos anos.

E eu acho que os cerejais acabaram (isto na minha óptica) porque os cerejais eram quase sempre dentro das vinhas. E veio a malvada da química para a erva e eu tenho a impressão que foi isso que matou as cerejeiras. Embora também há quem diga que veio um insecto que lhes sugou todo o pé. Pronto, a cerejeira tem que ter seiva, não é? Como todas as árvores! E que lhes sugou essa seiva e que a pouco e pouco elas morreram. Mas eu, na minha óptica, vou mais para os químicos, porque a vinha tem a raiz assim; e a cerejeira tem a raiz assim. A cerejeira via à procura do comer, assim. A vinha tem a raiz assim – a química mata a erva que está à roda da cepa, mas também mata a raiz da cerejeira, que está a babujo da terra. Mas havia… Havia anos – conforme também a colheita – havia anos que cinco ou seis mulheres chegavam para dar volta aos cerejais, e outros anos que eram dez e quinze e dezasseis!

Eu lembro-me que, num ano, fui para a cereja… O dinheiro todo da cereja que eu ganhei foram duzentos e quarenta escudos. Foi para comprar o meu trem de esmalte para o meu enxoval. Ouviste? E ainda hoje tenho panelas e tachos desse enxoval, e já lá vão cinquenta e quatro anos que eu estou casada… É verdade. E outro ano, foi para comprar panos – pano para fazer lençóis! É claro, e tinha também que ajudar a minha mãe, não é? É assim…

 

 

 

 

 

 

Caraterização

Identificação

Práticas sociais, rituais e eventos festivos
Agricultura e silvicultura
Os cerejais
1938
Delfina Cunha
Trabalhadora agrícola

Contexto de produção

Contexto territorial

Fetais, casa da Delfina Cunha
Santo Quintino
Sobral de Monte Agraço
Lisboa
Portugal

Contexto temporal

2013

Património associado

Cantigas ao Desafio
Cestos, vestuário (avental), cãibo, maquinos.
pomares de cerejeiras

Contexto de transmissão

Estado da transmissão
ativa
Descrição da transmissão
Agentes de tramissão

Alguns pomares no concelho de Alenquer, mas em menor quantidade e sem as características relatadas pela Delfina Cunha

Idioma
Português

Equipa

Transcrição
Ana Sofia Paiva
Registo vídeo / audio
José Barbieri
Entrevista
Filomena Sousa
Inventário PCI - Memoria Imaterial CRL